Os burros espalhavam-se pelo adro, onde, à falta de palácio para olhar, fitavam as pedras do muro a que se julgavam agarrados por uma corda lassa, sem qualquer laçada ou nó. Quem neles demorasse o olhar, via-lhe o descorçoamento nos olhos a que nem o abanicar das orelhas conseguia dar brilho. No lado oposto da rua, os respetivos donos, de aspeto muito mais áspero do que o pelo dos jumentos, esbracejavam, talvez para as revestir de mais credibilidade, iam narrando as histórias e o feitio de cada um dos animais.
É a nossa cestinha de mão, disse a dona Eufrásia, uma senhora de meia idade com a pele da cara tisnada pela sobre-exposição às selfies, referindo-se à burra “Cynara”. A expressão inquiridora da jovem repórter obrigou-a a esclarecer rapidamente: está sempre disponível e faz tudo. Ao ouvir isto, a burra “Cynara” semicerrou os olhos e esqueceu o abanicar das orelhas para as espetar em direção à conversa que acabara de lhe espevitar a curiosidade. Então, ela era isso: as cenouras que todas as manhãs comia, afinal não eram dádiva, eram grilhões. Arreliada, sem querer continuar a ouvir a voz da dona, a jumenta fixou o olhar de ódio na ponta da corda que lhe escorria desde o pescoço até aos pés. A seu lado, o burro “Fado”, assim nomeado em homenagem à canção nacional, obviamente, deu em rebolar-se às gargalhadas no pó do terreiro para onde se acabara de deixar tombar. O que deixou a burra Cynara ainda mais arreliada e, se não fosse o burro “Coxo”, assim batizado por ser manco, como era evidente, a acalmá-la, tinha desatado em lágrimas ali mesmo. O que não podia ser. Uma jumenta, por muito burra que seja, nunca chora.
Indiferente aos sentimentos do animal, a dona, a senhora Eufrásia, já muito se adiantara na conversa com a jornalista. Contara-lhe como adquirira a sua “Cynara” num leilão de gado asinino onde, sem contar, tinha ido parar durante umas férias de verão passadas no Norte. Nesse dia, precisamente, nem sequer tinha qualquer intenção de comprar uma burra, mas quando se deparou com aquela, tão miudinha, escovadinha e sossegadinha, ali, meio perdida entre os outros burros todos, pareceu-lhe que para alguma coisa haveria de lhe servir e comprou-a, logo. Em boa hora o fizera. Agora, seja para o que for, ali está a boa da burra Cynara. Ao adquiri-la, tomara a decisão da sua vida, agora, até o marido, que não vira com bons olhos a compra, o reconhece. O que ela não contou à repórter, porque ainda não sabia, nem tinha como saber, foi que a burra, a sua cestinha de mão, ainda um dia lhe haveria de rachar a testa com o maior dos coices que numa burra se possa observar.
Numa bela manhã de março, ainda nem dois anos haviam passado desde a tarde da Exposição de Burros na aldeia, a burra Cynara deu pela dona Eufrásia distraída junto ao riacho que atravessava o quintal da casa e foi-se-lhe chegando. Devagarinho, em pezinhos de lã, aproximou-se, aproximou-se e, quando já estava suficientemente perto, zás: acertou com os cascos traseiros no grande rabo “eufrasiano”, projetando a dona de cabeça contra a pedra que lhe rachou a testa em dois.
“Cestinha de mão”
“A expressão inquiridora da jovem repórter obrigou-a a esclarecer rapidamente: está sempre disponível e faz tudo. “