Celebrar o Vale do Côa e o Alto Douro

“A Arte Rupestre foi classificada como Património Mundial há 24 anos; o Alto Douro Vinhateiro há 21”

A descoberta das gravuras rupestres no Vale do Côa foi um momento memorável e inesquecível no Portugal do final do séc. XX; foi um tempo de grandes mudanças no país que dez anos antes entrara na CEE. Eram os anos “noventa” do século passado.
Foi o período de maior crescimento económico do Portugal moderno, com os milhões que chegavam da Europa e o investimento no betão, que marcou o cavaquismo. O Portugal atrasado e pobre deu lugar a um país cheio de energia e esperança, esperança na mudança, na transformação em país europeu e moderno… uma metamorfose sempre adiada e que continua a ser a utopia de muitos…
Em Vila Nova de Foz Côa, a EDP construía uma grande barragem que prometia ser a maior albufeira do interior, para a produção de eletricidade, mas também como reserva de água e espaço de lazer. E é durante a construção que ocorre um dos momentos mais extraordinários da história contemporânea portuguesa: a mobilização pública, em especial dos jovens e da comunidade científica, no interior desertificado e abandonado, que se impõe às decisões centralistas e a um dos governos mais autocráticos da democracia portuguesa – contra todas as previsões a barragem não avança e a preservação da Arte Rupestre acontece.
Com a divulgação pública em 1994, pelo arqueólogo Nélson Rebanda, que acompanhava a construção da barragem do Côa e terá identificado a primeira rocha gravada na Canada do Inferno nos finais de 1991, passou a haver grande discussão sobre a importância das gravuras rupestres e se deviam ser submersas.
Mila Simões de Abreu assumiu então a defesa das gravuras rupestres e mobilizou a comunidade científica internacional. Depois foi a imprensa, e o artigo no “Público” de Manuel Carvalho, “Barragem de Foz Côa ameaça achado arqueológico”, que deu dimensão à defesa da arte rupestre paleolítica ao ar livre, contra a vontade do governo de Cavaco Silva e a intenção de continuar da EDP. Um grande acampamento de estudantes, à revelia das indicações de Manuela Ferreira Leite, a ministra da Educação de então, que proibiu manifestações na escola de Foz Côa, saiu à rua e cantou mais alto que o ruído estrondoso das retroescavadoras o rap adaptado dos Black Company, “as gravuras não sabem nadar, yo”, que no Alto Douro passou a significar um hino pela Arte Rupestre – slogan que Mário Soares viria a adotar na sua caminhada para a presidência da República, ele que foi dos primeiros visitantes ilustres do Vale do Côa.
Na campanha eleitoral de 1995, António Guterres abraçou a defesa das gravuras e ganhou (foi o fim do cavaquismo). Em 1996 o novo governo mandou parar a construção da barragem e nasceu então o Parque Arqueológico do Vale do Côa (agosto de 1996). Salvou-se o maior conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre. Mas os núcleos de gravuras rupestres seriam elevados pela UNESCO à categoria universal de Património Mundial no dia 2 de dezembro de 1998. Foi o culminar de um processo que marcaria indelevelmente Portugal.
A Arte Rupestre foi classificada como Património Mundial há 24 anos pela UNESCO. E, depois de uma primeira tentativa de se criar um museu no local onde se escavava o muro da barragem, foi construído o Museu do Côa, em 2010, na colina sobranceira ao Côa. Numa admirável obra de arquitetura, da autoria de Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, devidamente inserida no contexto, com uma missão de divulgar e promover a Arte Rupestre e que se afirmou ao longo dos anos como um centro de vida cultural único no Portugal profundo e de baixa densidade. Hoje, o Museu do Côa é não apenas o testemunho da arte paleolítica, é também o mais relevante e dinâmico museu de arte contemporânea do interior de Portugal, é um dos maiores museus portugueses e o lugar que celebra o encontro dos dois patrimónios mundiais da região (o norte do distrito da Guarda): a Arte pré-histórica do Vale do Côa e o Alto Douro Vinhateiro, que no dia 14 de dezembro de 2001 foi elevado a Património Mundial da UNESCO, enquanto “Paisagem Cultural, Evolutiva e Viva”. Um mês de dezembro em que temos de celebrar a Cultura, numa das regiões mais frondosas e bonitas, entre a Arte Rupestre a Paisagem, que a UNESCO classificou e celebrou como de referência universal.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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