1. A surpresa. Quando vemos na TV as manifestações violentas a confrontar a polícia e a causar estragos nas cidades, ficamos a pensar nas vãs expectativas de quem esperou que os regimes democráticos fossem capazes de satisfazer a globalidade dos cidadãos sem que estes recorressem à violência. Melhorar a vida das pessoas, de forma a que elas vivam uma vida digna e próspera, é, por assim dizer, a razão de ser dos governos democráticos. Os governos que se veem hoje confrontados com a violência não contaram com os interesses contraditórios que são obrigados a gerir. Não contaram também com a necessidade de as sociedades respirarem de vez em quando através de válvulas de escape que aparecem quando parece menos possível, quando até houve progresso numa boa parte dos grupos sociais. A vontade de ter mais, numa época em que a tecnologia nos exibe todos os dias as diferenças dos que estão acima de nós ou dos países com que nos identificamos, pode ser o rastilho suficiente para acender protestos nas redes, que depois passam para a rua, para ter efeitos reais.
2. O espetáculo. Acontece que, de uma maneira natural, e sem que pareça que as coisas se tocam, as manifestações pacíficas deixam nascer ao seu lado, sem que haja resistência suficiente ou mesmo desejada, o protesto das caras tapadas, das pedradas, do quebrar das barreiras, do incendiar de contentores e automóveis, do quebrar de montras. Depois vem a resposta da polícia, com as barreiras de metal, o gás lacrimogéneo, os jatos de água, as balas de borracha. Trata-se de uma coreografia sem a qual hoje não passamos na televisão, espaço onde se joga a exibição das forças em confronto. As lutas de rua são feitas essencialmente para aparecer na televisão ou nas redes de forma a ganharem aí legitimação pela lei do facto consumado e da violência-espetáculo. Como se, para além do efeito real de destruição, o lançamento de uma pedra, o jato de água da polícia ou a máscara de um jovem fossem ícones a marcar uma estética, o design de uma época. A violência tornou-se assim necessária aos movimentos de protesto, sobretudo àqueles que não têm uma expressão numérica muito significativa. Parece que, se não aparecer em imagem violenta, o protesto ficou vazio e não deixou “marcas”, que é o que pretende deixar.
3. O caos. Não misturando regimes democráticos, que permitem a manifestação e o jogo democrático, com os outros, que só esperam o melhor momento para impor a autoridade sem garantias, sente-se, no entanto, que o planeta ferve e que os países, democráticos ou não, estão por arames. O caos, mais ou menos minimizado pelos governos, será talvez o panorama do futuro, sendo cada vez mais difícil governar e mais fácil mandar bitaites cá de fora, sem arriscar o corpinho no poder. Nota-se que todo o mundo está utopicamente sedento de mudança, mesmo as sociedades que parecem estabilizadas e que se torna tarefa quase única dos governos gerir as expectativas, não as afrontando, cedendo aos grupos mais fortes, sem possibilidade de reformas e de uma visão larga que possa alterar a situação a médio prazo. O mundo vai ser cada vez mais difícil e não há líderes que aguentem tanta exposição e confronto. A queixa habitual por não haver líderes à altura destrói-se a si própria quando atiçamos a esses líderes o ódio de quem não é compensado ao nível das suas expectativas.
4. Oportunismo e conveniência. Ver políticos ou simples “opinion makers” a cavalgar as ondas das revoltas na rua parece às vezes exercício de sadismo. O Chile é o caso mais típico, com o PIB mais alto da América do Sul, mas com as expectativas goradas de ascensão das classes médias a ritmos que os queixosos acharam insuportáveis. Uma decisão política infeliz desencadeou protestos violentos. Mas os mesmos que nos jornais e redes denunciam as desigualdades e arbitrariedades nos países de democracia liberal (mais prósperos) absolvem-nas ou calam-nas logo a seguir nos países de economia controlada pelo Estado (às vezes na miséria). Pura hipocrisia.
Quem sai à rua a queimar carros e a partir montras espera por um lado o medo de quem está instalado, por outro a benevolência da imprensa com análises compreensivas para tudo e para nada. Tudo é integrado, tudo é relativizado, depois serão os adversários do governo a encontrar argumentos que, pensam eles, os ajudarão a seguir na alternância do poder. Assim, quem parte, quem destrói, fá-lo porque sente as costas quentes. Em países em que o contraditório existe, em que a representação política não se contesta, a violência das ruas é intolerável.
Para todos nós, é, no entanto, um sintoma. Um sintoma de que os regimes de democracia e economia liberal são os mais imperfeitos, exceto todos os outros. De que, mesmo assim, se prefere pisar o risco, sendo muitas vezes tolerante à violência e aceitando a sua inevitabilidade. O sufrágio é mau, os partidos que se criam nunca prestam, a abstenção ganha. Inventem um regime melhor e depois digam!