O meu saudoso companheiro de algumas horas boas que vivi, o Ruy Duarte de Carvalho, um dos mais brilhantes escritores da lusofonia, tem uma frase que vai fazendo o meu quotidiano, e que é tão útil nos tempos que desvivemos: «Há o que vi porque mo disseram, há o que vi sem mo terem dito, há o que conto e o que não conto»!
Vivemos tempos estranhos e simultaneamente entranhos, porque estamos perante uma realidade que tem um léxico ficcionalmente otimista e exageradamente enganoso.
Perante um conjunto de problemas que nos vão afetando a todos, na saúde, na educação, nos transportes, nas respostas sociais, entre outros, assiste-se a uma verve de tantos milhões que às vezes não sei se estou em Portugal ou trancado no cofre forte do tio Patinhas, uma das detestadas figuras do delator Walt Disney.
Acho que o que se está a assistir acaba por ser kafkiano, porque me parece estarmos com um discurso político de euforia por parte dos que dirigem, quando no terreno a realidade é muito diferente e os problemas avolumam-se sem que haja respostas locais. Em muitos setores da atividade económica e social há verdadeiros dramas, e quando os dirigentes são confrontados com falta de recursos, por incumprimento do Estado, as pessoas pouco conhecedoras desafiam a mostrar os milhões apregoados todos os dias nas parangonas da imprensa ou redes sociais.
Enquanto se conseguir estancar a montante, tudo vai correndo na perfeição do discurso do otimismo e as situações desagradáveis que se vão desenvolvendo, sempre vão tendo a desculpa dos danos causados por uma guerra que veio mesmo a calhar numa altura em que se anteviam momentos difíceis na União Europeia e no tal mundo globalizado que deixámos construir!
Confesso que faço minhas as palavras do Millor Fernandes, escritor brasileiro recentemente falecido: «O desespero eu aguento. O que me apavora é essa esperança»!
Cada vez temos menos respostas para tudo aquilo que julgámos adquirido e alguma falta de recato de quem nos dirige traz em cada vez mais sectores da população uma vontade de mudar para quem lhe oferece tudo que não lhe pode dar, na proposta de alterar os princípios da democracia!
A estupidificação começou com a concorrência entre canais de televisão e generalizou-se através do uso das redes sociais, onde prolifera a devassa, a ignorância e a altivez de tantos, local ideal para denegrir instituições e pessoas que são gente valorosa e que lutam ou lutaram pela democracia e liberdade.
É nestas alturas que me recordo sempre de uma ideia de Umberto Eco. O escritor e filósofo italiano apontou uma característica às redes sociais, que dão o direito à palavra aos «imbecis que antes apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, mas sem prejudicar a coletividade». Acrescentou Umberto Eco que «normalmente, eles eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel».
Esta ideia de Umberto Eco, que também foi uma autoridade no campo da semiótica, foi lançada em 2015. Já lá vão uns anos. Mas o escritor fez questão de acrescentar a seguinte ideia: «Antes das redes sociais, a televisão já havia colocado o “idiota da aldeia” num patamar em que este se sentia superior. O drama da Internet é que ela promoveu o “idiota da aldeia” a detentor da verdade», disse Umberto Eco quando um recebia mais um prémio na sua prestigiada carreira. (José Abranches).
Resta-me desejar umas Boas Festas e um Bom dia da Família a quase todos!
Bonitas palavras não engordam gatos!
“Vivemos tempos estranhos e simultaneamente entranhos, porque estamos perante uma realidade que tem um léxico ficcionalmente otimista e exageradamente enganoso.”