Há quem cresça sob saraivadas, ou isolados tiros certeiros, de “és um burro”, “sua besta”, “anormal”, e há quem cresça no embalo de um “pior que o barroco da moura”. Pelo menos, não sei se por me agradar a robustez do pedregulho e o mistério da moura, sempre achei que era um embalo ser comparada, ainda que inferiormente, àquilo. Se bem que desconheça onde se encontra tal barroco, ou sequer se existe, sempre o idealizei velado por musgo verde com uma moura estirada em cima. Exercício muito útil na hora de me escapulir ao que, desde cedo, intuí como insulto, já se vê.
Por não me parecer bem ser de instigar rancores, há um ror de anos que não me ocorria chamar a alguém “barroco da moura” e, como quem mo chamava já há muito que por cá não anda, quase que esqueci tal epíteto. Esse e os do resto do lote de onde esse saiu, mas que agora não vêm ao caso. E ainda bem que não esqueci, pois dizer a mim própria que sou pior que o “barroco da moura” soa-me um bocadinho menos penoso que desatar a gritar-me que sou uma “burra”, uma “besta”, uma “anormal” ao aperceber-me que não tenho passado de uma preconceituosa de província.
Leva uma pessoa a vida a querer afastar-se do feitio da avó, só porque sim, e acaba a descobrir que afinal lhe é mais igual do que ela própria nos seus dias mais brandos. Aqueles em que para ela não havia pior e melhor gente que a sua, em simultâneo e às carradas. A vizinha do lado de cima não passava de uma esquisita, ainda que muito séria e honesta. A do lado de baixo era uma empertigada, mas gente de bem. Para o lado da frente, como não havia ninguém, esperava em segredo que pudesse vir a ser ocupado por alguém a quem ela reconhecesse legitimidade para se avizinhar. A Gertrudes, a Felismina, a das Dores e a das Neves estavam fora de questão. A de Jesus, da Conceição e a de Fátima ainda pior. Ninguém, não havia na cidade Maria que lhe assentasse. Por fim, lá acabou por chegar alguém de fora com todos os predicados requeridos. Séria e honesta sem ser esquisita, gente de bem sem ser empertigada. Tal e qual as antigas vizinhas, que só tinham ido viver para Coimbra porque não queriam ficar longe do filho doutor e dos netinhos que nascessem.
Lembro-me de, nessa altura, lhe ter perguntado porque não voltavam os filhos doutores para o pé das mães em vez de serem elas a ter de partir e de ela me ter explicado com o facto de a «Guarda ser mãe para os de fora e madrasta para os seus». À conta disso, passei parte da minha infância agastada com a boa da Guarda.
O problema agora é que, se bem que há muito que me tenha reconciliado com ela, passar a apreciar mais as vizinhas do lado de cima e do lado baixo é que ainda não consegui. Tal qual minha avó – ou um “barroco da moura” que não percebe nada – acabo sempre a achar que só quem ainda não vi reúne suficientes qualidades para se avizinhar. Aos que já conheço, continuo a só achar-lhes defeitos que mais arrefentam do que aquentam. Mas do mal o menos: não sou a Guarda. Esta culpa já ninguém lha atribui. Quero que fique só minha e, como também não me apetece continuar a ser “barroco da moura” o resto da vida, estou capaz de a arrumar de uma vez por todas. Há que aprender a dar o devido valor aos nossos, pois para os depreciar e esquecer já bastam os outros.