Balada de uma reconstelação

Escrito por João Mendes Rosa

«[…] constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus…» (Bernardo Soares, “Livro do desassossego”)

Eu nunca o tinha visto antes. Orçava aí pelos 17 anos e separava-me dele um reposteiro em lona no repartimento hospitalar sob um nome medonho, bem sabemos, mais de falso Nobel do que de neurologista consagrado (que esses louros já há muito a Europa lhos sonegou!), progenitor da execranda Lobotomia e sequaz de carbonários e bombistas, implicações crapulosas – não fosse ele um “Buicidente” – no Regicídio e infanticídio associado. A simples evocação da personagem levou-me a revisitar conceitos como dor crónica, neurose obsessiva e ansiedade intratável. Senti-me como se as minhas células neuronais interiorizassem essa nefanda invocação histórica e hoje duvido mesmo se não foi o espectro do nefando chefe progressista que atraiçoou D. Carlos a adentrar-se no meu corpo debilitado pela dor e pela solidão.
Encimava o leito de Eduardo (chamemos-lhe assim) uma chapa com o número 4027: um dígito acima do da minha, por conseguinte. Ouvia-lhe a respiração ofegante durante aquelas seis noites insones de má memória. Cumprimentávamo-nos com o olhar quando eu, arrastando o sarilho com o reservatório de soro, resolvia ir tomar ar – tinha ao menos esse privilégio! – e partilhar com a comunidade de gansos-do-nilo residente nas traseiras do edifício hospitalar, os sobrantes de um pacote de bolacha-maria do lanche do dia anterior. Ia sempre sentar-me num banco de madeira e conversar com uma magnólia que me trazia recordações da casa de meus avós na remota Beira. Que me dizia ela? Tanto quanto o Eduardo, mas tranquilizava-me ouvir os seus silêncios e senti-la como companhia aprazível, que não se cansa do nosso olhar melancólico. Oferecia-me além do mais um quadro da infância revisitada, e eu, sempre dela saudoso, malquistava o tempo por me ter deixado a sós com as velhas recordações.
Volto ao meu 4026. Espreito a nesga de horizonte que me permite contemplar o Tejo. Relanceio ainda o olhar sobre o lettering que constitui o verdadeiro brasão de armas hodierno do patrono hospitalar alçado no topo do edifício – reverbero convenientemente, uma vez mais, o vira-casacas, arranjista, adesivista e clínico videirinho (que para mal dos meus pecados foi antigo estudante do Colégio de S. Fiel) e saúdo o Eduardo com a mesma enunciação facial de sempre. Ele não sorri. Não pode. Mas é como se os seus olhos esperançassem as melhores venturas, porque há olhares que valem por todas as expressões corporais e substituem todas as palavras de que uma alma sensível e generosa é capaz de expressar. Nesse dia assinalava-se aquilo a que os Cristãos chamam de “Sábado de Aleluia”: era, pois, véspera de Domingo de Páscoa. Sabia que no dia seguinte não teria a presença – mesmo virtual – de nenhum dos meus familiares e eu, fora há muito da Graça Divina, não esperava milagres.
Soube, entretanto, por uma conversa entrecruzada, que o Eduardo sofrera precocemente um acidente vascular cerebral e que o seu estado seria bem mais alarmante do que davam a entender os seus olhos. Senti-me envergonhado pois achei-me imerecedor daqueles olhares afáveis, sabe-se lá com que sacrifício arrancados ao fundo da sua alma em transe crudelíssimo, presa a um corpo que não a deixava respirar e que possivelmente já nem reconhecia como seu.
Durante a noite senti uma inquietação inusitada no 4027. Ou talvez fosse apenas dentro de mim que tudo acontecesse ainda, como no poema de Eugénio. Era a quarta noite da minha estância hospitalar. Adormeço já noite entrada e com a mais amarga das sensações. Acordo às 6.00h no dia da Ressurreição de Nosso Senhor. A janela fulge um luzeiro muito ténue, ainda assim pouco generoso, mercê da mudança da hora. Muno-me da utensilagem de higiene. Não há ainda toalhas lavadas pelo que para enxugar as carnes desalentadas recorro a um lençol, não sem antes ter procedido à higienização do compartimento. Dava-me por satisfeito pela proeza de ter sonegado um pijama lavado na noite anterior.
Pensei no Eduardo. Ao regressar ao meu 4026 enchi-me de coragem e entreolhei pela cortina o seu (agora) silencioso compartimento…
No dia da Ressurreição do Senhor, entendi por que aquela criatura com a qual simpatizara desde a primeira hora deixara a sua alma libertar-se daquele sepulcro insuportável que era afinal o cativeiro do seu próprio corpo. Há várias formas de ressurreição. E a reconstelação é uma delas. E eu também teria a minha. Três dias depois era-me concedida alta hospitalar. E doravante nada será como dantes! Há que repovoar de flores viçosas os jardins mortiços e arruinados…

O autor escreve em concordância com a ortografia anterior ao AO 1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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