AVC

Escrito por Diogo Cabrita

“Uma família que trabalha fica destruída com este pouco, porque agora a vigilância, a antecipação das asneiras, é prioritária.”

Imaginemos que o AVC do Ernesto lhe retira a capacidade de entender qualquer rótulo e, em simultâneo, a arrumação básica, o retorno de qualquer objeto ao seu lugar prévio. Na terceira gaveta, onde estão os panos de mesa e os guardanapos, ele coloca agora facas, latas, canetas. As conservas, como não identifica os seus rótulos, não sabe ao que vai. Quer salsichas e abre feijão. Abre outra e é milho – são redondas, são pequenas. Ernesto, porque teve um acidente vascular cerebral – uma pequena parte do seu cérebro morreu antecipadamente –, torna-se difícil. A vida de todos é agora mais complicada. Ana e os filhos precisam de tempo para encontrar o que antes era fácil, tentam chegar antes de Ernesto aos objetos que ele quer. Ontem, os óculos estavam no frigorífico e umas calças coziam na panela de pressão. Uma família que trabalha fica destruída com este pouco, porque agora a vigilância, a antecipação das asneiras, é prioritária. Ernesto é simultaneamente amor e trabalho. Fechámos as portas à chave? Fechámos o Ernesto num quarto quando saímos? Levamos sempre o pai connosco? Pedimos vaga numa instituição? Ernesto veio do hospital há um mês e a situação tem-se agravado. As férias de Rui acabaram, as férias de Teresa estão em curso, mas as mudanças permitem perceber que todos os recursos se esgotarão, sem que o normal regresse. O mundo, até ao dia 15 de maio de 2021, não voltará mais. Reabilitação do pai é agora um fracasso.
Hoje de manhã Ernesto escapou e foi conduzir. Foi ao mercado da D. Mariazinha e colocou frutas nos sacos, comprou vegetais e voltou para casa. Tudo estava bem menos o alvoroço e o pânico gerado pela situação. Comida sem recipientes parece ser mais fácil para o novo Ernesto. Conduzir não trouxe surpresas negativas. O susto de todos enquanto não regressava foi imenso. O desconhecimento levantou gritos de prenderem-no, encerrarem-no, institucionalizarem-no. Houve acusações de desatenção, dedos erguidos, vociferações. Ele chegou ligeiro com sacos nas mãos e um sorriso incrível. “Não consigo perceber os rótulos, não consigo arrumar, mas se as coisas estiverem visíveis é tudo mais fácil para mim”. Ana, comovida, abraçou Ernesto. “Estava tão assustada, meu querido, não podes sair sem me dizer”, respondeu-lhe. Criaram uma cozinha ao estilo de uma mercearia e Ernesto conseguiu arrumar nos lugares e escolher o que queria. Agora, para a roupa, teriam de modificar os armários e desistir das gavetas, retirar as portas e ter uma arrumação ao jeito de uma loja. É mais fácil adaptar as pessoas ao mundo que a realidade ao Ernesto, pelo que, apesar de melhorar, a nova vida continuaria a colocar desafios e interrogações. Um AVC desconstrói toda uma família e o de Ernesto não era dos mais complexos. O pai reconhecia-os, falava sem dificuldade, estava bem do ponto de vista motor. O susto aconselhava o internamento, mas a leveza das consequências da doença não era irresolúvel. Separava-se a família agora entre as decisões possíveis e a opção de cada um. Ernesto ficará com Ana que o ama, Ana deixará o emprego para ter Ernesto como tarefa, adaptarão a casa ao novo pai e os que não quiserem irão para seus novos espaços. Nesta família a capacidade financeira ajudou. Em muitos é mais um problema que se acrescenta ao AVC.

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Diogo Cabrita

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