Assumir a nossa história

«O convívio com o passado tem de se percebido à luz dos «avanços civilizacionais»»

Escrevi aqui durante a campanha para as eleições presidenciais, e citando Miguel Esteves Cardoso, que «ainda bem que temos Marcelo». Recebi então mensagens discordantes e outros sobre a falta de isenção do meu comentário. Ainda bem, a liberdade de opinião é precisamente isso, reivindico-a para mim e para aqueles que não pensam como eu – por isso, como naquelas famosas palavras atribuídas a Voltaire, posso discordar «do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer». Muito mais importante do que o facto de um diretor de jornal não ser obviamente um mentecapto sem opinião, é ter opinião e o direito de a exprimir. Foi precisamente isso (ou também isso) que celebrámos no dia 25 de Abril: a liberdade, a liberdade de expressão e a liberdade de opinião – por estranho que pareça (ou possa parecer) a qualidade da Democracia portuguesa é hoje uma referência no mundo, com as suas imperfeições e defeitos, mas, mesmo quando temos vontade de discordar ou desconfiar da dimensão qualitativa das conquistas de Abril, devemos deter-nos na observação da qualidade da nossa democracia e da de outros países, inclusive no nosso contexto geopolítico.
O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa nas comemorações do 25 de Abril foram, precisamente, uma ode às liberdades, às conquistas de Abril, mas foi essencialmente um olhar sem preconceitos ou estigmas para o Portugal de hoje a partir da memória histórica, da guerra colonial ou da reinterpretação da história. O Presidente da República recordou que muitos dos soldados que estiveram em África protagonizaram o terror da guerra e foram vítimas de um regime ditatorial, encerrado em anacronismos e incapaz de perceber que o colonialismo estava ultrapassado. E foi um discurso em que o Presidente defendeu que o país assuma o seu passado sem divisionismos, nem ressabiamentos espúrios, assumindo toda a sua complexidade, reconhecendo sem pruridos a brutalidade e a violência, os abusos e as escolhas erradas, mas independentemente da perspetiva individual, que se compreenda a dinâmica da história e perceba o passado aos olhos desse tempo sem sentimentos vingativos ou obtusas posições maniqueístas.
O passado colonialista, a guerra colonial, a opressão ou a independência das antigas colónias não podem continuar a ser vistos e analisados sempre num contexto sectário e segregador, de ódio e vitimização, vivemos num tempo em que temos de saber assumir os defeitos e virtudes na nossa história – e homenagear os que morreram na guerra colonial, pois fizeram-no em nome da ideia de que essa era a opção correta e muitas vezes discordando desse caminho ou obrigação (a maioria dos capitães de Abril também foram vitimas dessa obrigação e oficiais com responsabilidades nas antigas colónias). O convívio com o passado tem de se percebido à luz dos «avanços civilizacionais» como muito bem disse o Presidente da República. Porque esses avanços civilizacionais permitem-nos afirmar categoricamente que nesta jovem, mas extraordinária democracia, carregada de defeitos, não devemos continuar a procurar divisões entre bons e maus, entre os que defendem a glória do império e os que querem apagar a história, entre os saudosistas e os acusadores das novas alvoradas, entre as vítimas e os algozes. Assumir o nosso passado é integrar quem é diferente, é aceitar que o outro pense ou interprete de forma diferente o mesmo acontecimento. E é assumir um olhar distinto sobre a mesma história. Sim, como disse Marcelo, «é uma missão ingrata», mas que diz respeito a todos e que todos temos de assumir, muito para além da vontade de demonizar tudo o que herdámos, da vontade de demolir o Padrão dos Descobrimentos ou passando uma borracha sobre o colonialismo, o racismo ou a escravatura. Sim, somos esse povo que já fez muitas coisas de que hoje não nos orgulhamos, que dominámos pela força, que escravizámos, que fomos opressores… E sim somos esse povo que tem muito orgulho na sua história de oito séculos, que fomos conquistadores e demos «mundos ao mundo», que abolimos a escravatura antes de outros, que gerimos mal a descolonização, mas integrámos os “retornados” de forma exemplar e demos igualdade de oportunidade a todos os portugueses.
Mesmo quando os extremos, de esquerda e de direita, defendem o sectarismo e a negação do peso da memória, o julgamento do passado não pode ser feito aos olhos dos valores do presente. O nosso presente e futuro tem de assentar no saber conviver sem preconceitos com o passado, sem complexos, nem soberbas, louvemos ou detestemos esse passado.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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