Volvidos cerca de oito séculos desde a sua passagem pela Terra, é extremamente difícil para nós imaginarmos o impacto que uma figura como Francisco de Assis teve na sua época. Perante uma Igreja opulenta e viciosa e um clero alheado dos ensinamentos das Escrituras e distante dos seus fiéis, Francisco de Assis indicou um novo caminho. Um caminho de humildade, de prática constante de boas ações e de atenção aos mais necessitados. Foi destemido a indicar o caminho, mas ainda mais a percorrê-lo. A sua vivência esteve sempre à altura daquilo que defendia.
Artífice de uma elevação sem precedentes do espiritual face ao material e pioneiro no entendimento holístico do Homem e da Natureza, Francisco de Assis acreditava que um simples raio de luz tinha o poder suficiente para eliminar toda a escuridão que assombrava o mundo. Profundamente crente, a mensagem de Francisco de Assis remete claramente para a luz celestial.
Alguns séculos mais tarde e desprovida da sua componente divina, reencontramos a mensagem de uma luz libertadora através do uso da razão e da difusão do conhecimento. Para racionalistas, iluministas, positivistas e proponentes do humanismo científico, só assim seria possível erradicar a ignorância e o obscurantismo em que a maioria das pessoas viviam mergulhadas.
No passado dia 20 de junho, ficámos todos a saber que estamos ainda demasiado longe do sonho partilhado por Immanuel Kant, Denis Diderot, Auguste Comte, Carl Sagan e muitos outros. Uma criança com apenas 3 anos de idade morreu devido a maus-tratos. A cada nova informação apurada, a história, já suficientemente perturbadora, vai ficando cada vez mais macabra. Uma mãe incapaz de pagar os “honorários” de bruxaria a que recorreu por motivos amorosos, entrega a sua filha de 3 anos como penhora. A família de charlatães, perante as faltas de pagamento, submete a criança a maus-tratos e tortura que a conduziriam até à morte.
O Estado, através dos mecanismos de que dispõe para lidar com este tipo de situações, foi incapaz. A sociedade, no seu todo, revelou-se impotente para prevenir um desfecho com tamanha crueldade. Até Deus, para quem acredita, prescindiu da Sua omnipotência.
A pequena Jéssica faleceu vítima da ignorância, da superstição, da indiferença e da crueldade humanas. Que esse dia seja recordado como o dia em que tudo falhou. Nenhuma luz chegou ao quarto onde a pequena Jéssica viveu horas e horas de sofrimento sozinha e atormentada. Podemos apelidar o episódio de ilustrativo da “miséria moral” do país e de coisas bem piores, mas continuaremos a marcar passo se não formos capazes de reconhecer que só a promoção universal da cultura científica poderá prevenir a sua repetição. É esse o caminho. Um caminho que, à imagem de Francisco de Assis, devemos percorrer com a firmeza necessária e com atenção particular aos elementos mais vulneráveis da nossa sociedade.
* Antigo presidente da Federação do PS da Guarda e ex-vereador da Câmara da Guarda