As feridas narcísicas e o vazio existencial

Escrito por Pedro Fonseca

“Em tempos idos, alguns espíritos esclarecidos resistiram e contrariaram essa tendência de sobrevalorização e santificação da ciência.”

Fomos criados por uma divindade celeste à Sua imagem. Habitamos no centro do Universo. Somos os únicos seres dotados de razão. Assim se rezou, durante séculos, o narcisismo universal humano. No início do século XX, Sigmund Freud explicava ao mundo como a ciência tinha desferido três feridas profundas nesta imagem que a Humanidade tinha de si própria.
Nicolau Copérnico foi o autor da «ferida cosmológica», ao demonstrar que a Terra não era o centro do Universo. Seguiu-se a «ferida biológica» de Charles Darwin, que provou que os seres humanos não consistiam numa criação à parte do mundo biológico, partilhando uma longa história evolutiva com todos os outros seres vivos. Por último, o próprio Freud protagonizou a «ferida psicológica», mostrando que existiam forças do domínio do inconsciente que, escapando ao controlo racional, influenciavam os nossos comportamentos. Algumas décadas depois, Richard Dawkins desferia mais uma «ferida narcísica», alicerçada no avanço dos conhecimentos sobre a genética: os seres humanos mais não são do que máquinas de sobrevivência programadas pelos genes para garantirem a preservação e reprodução destas «moléculas egoístas».
O parágrafo anterior é suficientemente elucidativo quanto às implicações filosóficas que o avanço do conhecimento científico produz. A ciência e a tecnologia são inquestionavelmente as principais impulsionadoras da mudança no nosso modo de vida coletivo e, por i tem levado muitos espíritos eruditos a defender que só a ciência se poderá assumir como panaceia para os problemas da Humanidade, ostracizando, declaradamente ou por defeito, as outras formas de interpretar e explicar o mundo, desde a religião à filosofia, passando pelas artes e pela poesia.
Nas últimas décadas, temos assistido à lenta incisão de mais um duro golpe no coletivo humano: o vazio existencial. A tecnologia, aplicação prática do conhecimento científico, está no epicentro de uma nova forma de viver e de existir. Estamos em plena Era da Tecnociência, como lhe chamou Jürgen Habermas, em que tudo é cada vez mais superficial e efémero, com cada vez menos espaço e menos tempo para pensar e refletir.
Em tempos idos, alguns espíritos esclarecidos resistiram e contrariaram essa tendência de sobrevalorização e santificação da ciência. Entre nós, Alexandre Herculano, perante a força da revolução industrial em curso, duvidou da ideia de que a ciência e a tecnologia eram inevitavelmente sinónimos de progresso, enquanto Antero de Quental, no auge do positivismo, lutou de forma destemida contra a desvalorização da filosofia face à ciência.
Apesar de todos os avanços tecnocientíficos, vivemos hoje tempos sombrios e de incerteza quanto ao futuro. A ausência de espíritos esclarecidos da craveira de Herculano e Quental, capazes de pensarem e refletirem sobre os problemas que afetam a Humanidade, só vem agravar ainda mais o vazio existencial reinante.

Sobre o autor

Pedro Fonseca

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