Arrasasse-se a “Casa da legião”

Escrito por Fidélia Pissarra

«Com tanta casa, casinha e casarão para se requalificar, transformar em museu, no centro da cidade, incluindo na própria praça “Velha” e arredores, a escolha tinha logo que recair na única que não devia»

Na primeira metade do século passado, alguém olhou para as construções à volta da Sé e teve a brilhante ideia de as desconstruir. Umas foram simplesmente arrasadas, outras mudadas de sítio a bem do arejamento da construção maior, ela próprio alvo de intervenções de restauro. Não sei se, por essa altura, já a casa da legião era casa da legião, mas o certo é que se esqueceram dela e para ali ficou a atravancar o caminho entre o solar dos Vasconcelos e a catedral.

Aquele monte de ruínas, a aperfeiçoar-se ao longo de décadas, provoca rubescência a qualquer guardense que por ali se aventure à deriva nas memórias, mas ninguém parece reparar. Aos sucessivos executivos camarários só tem dado para alindamentos de rotundas, edificações e reedificações para a frente e para trás e esqueceram-se, ou não se lembraram, da competição pelos olhares dos turistas, travada há anos e anos, pela fachada principal da Catedral com aquele monte de entulho conhecido por “casa da legião”. Confesso que, umas vezes mais discreta e outras mais descaradamente, acalentei, até agora, a esperança de que ainda haveria de aparecer um executivo que comprasse aquilo. Não para o restaurar, claro! Apenas para poder limpar o entulho e dar ao espaço a dignidade que lhe é devida. Quando, finalmente, os meus acalentos pareciam ir ser atendidos, eis que vejo a euforia provocada pela leitura da primeira parte das parangonas, “Câmara compra antiga casa da Legião…” ser de imediato fulminada pela segunda parte das ditas: “para lá pôr o museu Piné”.

Embora, para o caso não seja muito relevante, admito que nunca antes ouvira falar de Piné, da sua coleção de arte, da importância desta ou do respetivo paradeiro. O que dirá mais sobre a minha ignorância e distração do que sobre a real importância do acervo que, ao que dizem e eu acredito, será enorme. Mas, se não é caso para pensar “raios partam”, também não sei o que será. Então, agora é que tinha logo de aparecer a boa de uma coleção de arte a ditar que se faça a reconstrução da única das 1.001 casas que nunca devia pensar-se em reconstruir? Se isto não é muito azar junto para a cidade e, em particular para o adro da igreja que, não sendo adro, nem igreja, para ali fica à mercê da barbárie urbanística, também não sei o que será. Com tanta casa, casinha e casarão para se requalificar, transformar em museu, no centro da cidade, incluindo na própria praça “Velha” e arredores, a escolha tinha logo que recair na única que não devia. Sempre gostaria de encontrar alguém capaz de dizer que tal facto não é sinal dos azares que costumam acometer a cidade. Dos azares e desta nossa pouca habilidade para descortinar o que é importante do que é acessório.

As questões que se impõem serão: merece a Sé continuar espartilhada pela Casa da Legião em nome de uma coleção de arte? Não há milhentas outras soluções para acolher tal coleção? Às respostas, claro que não para a primeira e claro que sim para a segunda, convirá sempre juntar um bocadinho mais de ambição do que aquela a que estamos acostumados, claro.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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