Arquivo de fracassos

Escrito por João Mendes Rosa

Neste observatório privilegiado sobre um mundo necessariamente cinematográfico, mercê de um exílio que propende – como em todos os exílios, o de Herculano (vivido em Vale de Lobos, entenda-se; não em Rennes) tem agora sabor a sarcasmo: “isto dá vontade de morrer”, dixit) – neste observatório, dizíamos, que se predispõe para excitar estados meditabundos e compulsa o ânimo (escrevo a palavra lembrando-me de que esta tem a mesma etimologia de “alma”: “do Lat. ‘animu’”) para examinar papelada que entesoura velhos escritos e onde se transfunde uma alma em permanente desterro afinal, voluntariamente exclusa da correnteza ligeira da sucessão dos dias.
Regresso a mim, por conseguinte, à minha excepcional colecção de fracassos, piamente preservada em arquivadores de cartão e dou comigo em transe retrospecto ante uma vida folheada como um diário juvenil, a esmo dos livros começados e logo abandonados, poemários desapetecidos, apontamentos gráficos ocultos, fichas-de-leitura que remetem para madrugadas insones a compelir a lucidez dos olhos para novo tentâmen de escrita ou desenho. Conta-se que quando Edisson apresentou ao público um dos seus inventos – concretamente o cinetógrafo – alguém lhe perguntou quantas vezes tinha fracassado antes de conseguir o dispositivo final. Ao que o inventor terá dito: – Fracassei muitas vezes, mas graças a esses fracassos sei várias formas de não fazer um cinetógrafo. Cada vez me convenço mais de que coleccionar fracassos – Fidelino de Figueiredo, com desígnio equivalente, coleccionava angústias e como seu leitor (quase) compulsivo tenho razões para acreditar que terá sido feliz – e fazer com eles uma espécie de duúnviro vital, é um exercício que a psicologia remete para os domínios do auto-conhecimento e o bom humor diz que dá a avaliação imediata da nossa capacidade de não nos levarmos muito a sério, superarmando-nos a nós mesmos pelo confronto de possibilidades, a gestão das contingências, o relativismo dos acontecimentos, a subjectividade das prioridades, as escolhas de vida. Aceitar o insucesso para o tornar parte de nós, do nosso genoma mental, do processo inconcluso de nós mesmos é criar a mundividência que nos permite amar a vida nos seus aspectos menos briosos, as pessoas que caprichos do acaso fizeram menos luzentes, o pormenor silencioso e desprezado. Olho para trás, manuseando as páginas da investigação arqueológica abandonada em numeral decrescente, recordando o conselho dado à minha prole (– Um livro, meus filhos, folheia-se sem levarmos o dedo à boca, assim, reparem, como quem acaricia o papel!) e reaprendendo a observar congraçando-me, como Marcel Proust, com o passado pois as recordações são como os amigos comuns, “sabem fazer reconciliações”.
Releio a crónica impublicável, a transparência malograda da aguarela, reaprecio a fotografia desfocada; recupero o arrojo de uma exposição de pintura com obras inacabadas ou repudiadas pelos seus autores – e que se intitularia “O engano também é bonito”… (Um dia, quem sabe?) Ao fim de tudo deixo-me sorrir ao fazer uso deste observatório excepcional: na verdade estes pensamentos vão ao arrepio da mentalidade coeva, triunfalista e glorificadora, ávida de heróis – hoje, quem cumpre bem o seu dever não é um bom profissional, é um herói… Os habitantes do planeta Triunfo parecem cada vez mais precisados de ídolos – e por isso os forjam despudoradamente! – aceitando o jugo invisível dos “opinion-makers”, as vacas sagradas da modernidade para se posicionarem à direita ou à esquerda destes tempos estranhos e ominosos, voluntariando-se para serem títeres do mais aberrante e ridículo dos tiranos: o “influencer” – ciber-ditador que manobra, controla e asfixia as consciências…
Reconheço-me degredado muito antes da obrigatoriedade pandémica. Consciente dos meus balizamentos, estou cada vez mais acometido de incerteza; cultuo um universo constelado de dúvidas. Mas eis-me cada vez mais sedento de infinito, da transcendência dos dias e da sublimidade da existência. Tal como Confúcio, não procuro saber as respostas, procuro compreender as perguntas…
Todavia, este é (ainda) o tempo das verdades consagradas, das bentas certezas, das fórmulas mágicas, das instituições que regem e postulam os sentimentos; o tempo dos conquistadores de notoriedade – nem que seja num registo televisivo degradante! – das celebridades, dos super-egos, dos optimistas, dos proclamados, dos eleitos… Aptidões certificadas, diplomados reconhecidos. Não bastaria já ao mundo apenas homens? Não é já tempo? Apetece gritar com Álvaro de Campos: «Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?» Mas não o faço…
E de memória em memória, vogando no meu repositório de malogros deparo-me no envelope que enviei à minha mãe, com a madeixa de cabelo do primeiro dia da recruta – outro fracasso! – e sobrevem-me analogamente um desejo desmedido de voltar a atulhar o fornilho do cachimbo de “Captain Black” («Tu, meu turíbulo sagrado!», como diria António Nobre – o mais sublime dos fracassados: «meu coração, não batas, pára!») mas depois lembro-me de que hoje é Dia da Mãe – e tu minha adorada, desaprovarias um regresso aos deleites tabágicos… porque afinal, ó Mãe, também há fracassos que não merecem a pena…

* Escritor
** O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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