Aristocracia de espírito e plebeísmo mórbido

Escrito por João Mendes Rosa

O presente texto nada tem a ver com oligarquias nem jamais pretenderia fazer a apologia do privilégio contra o Direito. Tão-pouco remete para ideologias; na verdade o conceito de aristocracia, a interessar-me verdadeiramente, que não é o caso, iria procurá-lo primeiro nos teóricos clássicos e nos domínios da filosofia ancestral: a visão aristotélica abordava-a enquanto regime político, a par da monarquia e a democracia, com as suas respectivas degenerescências – a oligarquia, a tirania e a oclocracia. Mas nada disso interessa para aqui. Por isso também não vos constranjo com um debate entre Thomas Jefferson e John Adams e pôr em discussão se o governo dos melhores é ou não o ideal. A democracia fez o seu caminho e as repúblicas e monarquias moldaram-se à mesma sem grandes prejuízos para aquela. Mas as presentes linhas, insisto, resultam de uma mera contemplação quotidiana. Decorrem, por um lado, do defeito pessoal de ter lido, talvez precocemente, Fialho de Almeida e Ramalho (quer um estranho sortilégio que me depare amiúde com figurinos que são a encarnação veraz das personagens originais do séc. XIX, devidamente dissecadas n’As Farpas, claro). Encontro tanta vez, hoje em dia, o “Boulevaredeiro” que tanto dá «vivas à Carta como à Junta da Paróquia». O que muda é que o burguês proprietário do “chars-à-bancs” oitocentista, muito cioso do verniz do seu “hippomobile” tem hoje um BMW. Mas que fique claro de uma vez por todas que não tenho a pretensão de fazer aqui evocações ideológicas ou sequer económico-sociais. Consigno tão-só a inofensiva observação de formas de estar, de ser e de tentar ser. Daqueles que procuram com naturalidade guindar a sua vida pelo espírito (oh!, «aspirai às coisas do alto…», Lucas 6,20-26) e os que fazem do espírito uma espécie de fascinação perseguida freneticamente, postiçamente, alcandorando-se no rude plagiato, na tosca imitação, no reles decalque, sob a égide do cargo institucional ou político que nem eles sabem bem como conseguiram conquistar, mas debalde conseguem disfarçar a incorrigível mentalidade plebeia que os configura afinal, nem o ridículo da sua postiça intelectualidade.

E para evitar que daqui a dias me abordem no café acerca da identidade dos visados, ponhamos as coisas no plano histórico a partir do exemplo insuspeito decorrente do espírito contrastante de dois grandes vultos da política do século passado. Um e outro usam cartola, terno e colete, “colarinho enfomad”, bengala, bigode e cavanhaque (vulgo “pera”). São ambos republicanos. Mas um é aristocrata de espírito, outro, um autêntico plebeu de morbidade comprovável: António José de Almeida e Afonso Costa. O orador espirituoso e o verberador iracundo. A palavra inflamada, mas de subtil eloquência contrastando com a oratória veemente, febril, furial…

Pormenorizemos a comparação e por aqui me fico: aquando do malogro da intentona do 28 de Maio de 1908, ambos foram presos, já que apanhados em flagrante pela polícia. António José de Almeida ficou detido no Quartel do Carmo; Afonso Costa no Quartel do Cabeço de Bola, em encarceramento que duraria nove dias. O primeiro pediu que lhe trouxessem livros, papel e caneta. Iria ocupar o tempo do cárcere a escrever (possivelmente discursos). Afonso Costa começou por reclamar melhores aposentos (desejo que foi satisfeito) e também – de certo modo – escreveu. Mais: deixou para a posteridade, à guisa de diário (depois publicado no diário “O Mundo”), a vera natureza do seu íntimo: «Hoje o meu almoço já veio do Tavares [Restaurante Tavares Rico, Rua da Misericórdia, ao Bairro Alto]. Um bom linguado frito, um óptimo bife de vitela, batatas em palha, Colares, queijo da Serra, uma maçã, tangerina e banana»; «Eu próprio não me poupo, por enquanto, a despesas fortes! Ainda agora acabo de comer um almoço esplêndido, que me veio do Tavares por preço elevado, mas que encontra plena compensação no facto de me saber muito bem»; «Compôs-se a refeição de uma omelete “aux fines herbes”, linguado frito com batatas cozidas, espinafres, queijo da Serra, pão, maçã, laranja e tangerina»; «São quase horas de me deitar. Chegaram-se há pouco bolachas de água e sal, tostadas, especialidade do “Rendez-vous des Gourmets”». E até ao fim do encarceramento anotaria: «Almocei e jantei bem». No dia em que foi libertado, a 6 de Fevereiro (por deliberação de D. Manuel II), escreveu: «Esta manhã […], um bom almoço de linguado, bife de vitela, queijo da Serra, fruta e doce…».

*Escritor

O autor escreve de acordo com a grafia anterior ao AO de 1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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