Apontamentos de uma cimeira

Escrito por Fidélia Pissarra

Os ecologistas, do lado esquerdo, manifestavam-se contra as energias todas, em geral, e contra a nuclear, em particular. Os do lado direito, pelo contrário, manifestavam-se pelo direito a gastar mais uns litros de combustível numas autoestradas sem portagens.

O nevoeiro matinal do passado sábado impediu que Pedro Sánchez nos caísse do céu, ao contrário do previsto, chega-nos por estrada desde o Vale do Mondego. Melhor para ele, pôde apreciar a paisagem que a outros tem escapado. A aguardá-lo, à falta dos meninos de bata branca e de farda esverdeada, ou acastanhada, que também não se é assim tão velho para se ter a certeza, da mocidade portuguesa, estavam músicos de outras fardas e ministros e ministras com a nossa a sobressair do florido que lhe assentava que nem uma luva. O ar festivo do encontro até sugeria que qualquer câmara se entusiasmasse. Qual quê! Tanta espera esbugalhou-lhes os olhos numa arrelia tão grande que só já queriam ver manifestações, agigantadas por lentes e pandemia, contidas por dois ou três policias que nem ao trabalho de assestar má cara se deram. Contudo, aquilo poderia muito bem ter dado para o torto. Os ecologistas, do lado esquerdo, manifestavam-se contra as energias todas, em geral, e contra a nuclear, em particular. Os do lado direito, pelo contrário, manifestavam-se pelo direito a gastar mais uns litros de combustível numas autoestradas sem portagens. Se isto, de ecologista e consumistas, não é do que de mais improvável se possa ver convergir numa mesma manifestação, também não será fácil ocorrer-nos o que será. Ainda assim, será justo que a cidade lhes agradeça a incomodidade de aqui se terem chegado. Não fora por eles e as lentes teriam logo ali tombado de tédio. E fome, que aquilo era desalento jornalístico a mais para ser causado apenas por mero enfado e o cenário até ia bem para lá das pedras do chafariz, mas contra barrigas a dar horas não há como ir.

Tudo isto, reivindicações e birras de fome, faz desconfiar que a organização do evento não foi entregue aos mordomos do costume. Aos que nunca se lembrariam de pôr a rudeza da granítica catedral a competir com as bailarinas quase despidas do adro da igreja, o assassino maluco, o concurso televisivo e outro punhado de programas similares, nas televisões de aquém e além-fronteiras. No mínimo, punham as bailarinas no lugar da banda e o António Costa à frente de uma das rotundas de última geração, que o cartaz da cimeira era lindo, mas nada que se compare com os seixos empinocados a escorrer água. Depois, ninguém se pode admirar que já haja quem exija saber em quanto ficou a vaidade desta festança aos guardenses que tão necessitados estão de um hospital. Lá está, se tudo tivesse sido planeado com a prata da casa, alguém se haveria de ter lembrado que já se construiu e até reconstruiu o hospital uma data de vezes e, em vez das cores das bandeiras a fazer o contorno da sé, haveriam de colocar as bandeiras lado a lado a fazer de cortina na porta que se abre na mão. Até as televisões haveriam de nos ter posto a esperar pela conferência como quem espera a chegada de um qualquer jogador de futebol: a olhar para a parte traseira de um autocarro com os piscas ligados.

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Fidélia Pissarra

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