Aldeias com Sentido

Escrito por Daniel Joana

É lendo as estórias de Miguel Torga e Aquilino Ribeiro que melhor se mergulha no microcosmos das aldeias transmontanas e beirãs do século XX. Não eram lugares recomendáveis. Havia gente em número considerável, é certo. Comunidades etnograficamente interessantes. Por vezes, exemplos heroicos de união e solidariedade. Porém, era a miséria, a ignorância, a doença, a subserviência, os ódios e as vinganças que toldavam o quotidiano aldeão do século passado. Como o tempo tudo enverniza, principalmente a memória, hoje somos tentados a romantizar essas fórmulas de organização social, temperando-as com uma saudade apaziguadora. Não é a essas aldeias que devemos aspirar regressar.

Sabemos todos muito bem o que aconteceu à maioria das nossas povoações nos últimos 60 anos. Foram mirrando, paulatina e inexoravelmente, algumas até ao limiar da inviabilidade. Ainda assim, não acredito nas profecias que atestam a extinção das aldeias. Acredito antes nas que vislumbram a sua metamorfose. Poderão extinguir-se muitas. Outras sobreviverão com uma organização e um papel social diferentes. Não podemos fazer disso um drama.

A aldeia – belíssima palavra – pode ser, nos nossos dias, sinónimo de bens muito apreciados porque raros: tempo, espaço, segurança, habitação adequada, comunhão com a natureza, isolamento voluntário. Pode ser sinónimo de confortável densidade populacional. Pode ser a alternativa à vida acelerada e enlatada. Pode ser um luxo (que, como todos os luxos, ainda está ao alcance de poucos). O notável Gonçalo Robeiro Telles dizia que era preciso «instalar as pessoas com dignidade» e que isso só seria possível nas aldeias. Não foi há cem anos. Foi em 2011, quando o problema da habitação era ainda um embrião do problema que é hoje.

As aldeias não vão acabar. O tradicional modo de vida rural é que pode ter os dias contados. Quem, na atualidade, escolhe viver numa aldeia (e sublinho esta condição: a escolha), quer ser rural mas manter uma mundividência urbana. Sobreviverão, portanto, na minha opinião, as aldeias que puderem e souberem romper com a clássica dicotomia cidade-campo. Aquelas que conseguirem garantir o conforto e a simplicidade do espaço rural com a proximidade/disponibilidade de serviços essenciais (educação, saúde, conectividade) e oportunidades de interação humana próprias do espaço urbano. Aquelas que permitirem um modo de vida híbrido e equilibrado.

E também aquelas que conseguirem repensar-se para se inserirem em comunidades imaginadas* mais abrangentes. Para isso, é necessário que as aldeias – aquelas onde ainda for possível – redefinam o seu papel (algumas estão a fazê-lo). É preciso que, das suas raízes – históricas, culturais, etnográficas – saibam criar uma nova visão, definidora e motivadora. É preciso que criem algo de diferente para mostrar e oferecer… e agregar. É preciso que saibam encontrar um novo sentido. Precisamos de aldeias com sentido. Se puderem escolher, as pessoas vivem onde faz sentido viver.

 

*Para saber mais sobre o conceito de “Comunidades Imaginadas”, ainda que direcionado para escalas nacionais, recomenda-se a obra homónima “Imagined Communities”, de Benedict Anderson (1983).

** Do ponto de vista artístico, pela qualidade literária e perspetivas surpreendentes sobre a vida aldeã, destaco o livro de poesia “Uma Vida de Aldeia”, da poeta norte-americana Louise Gluck, Prémio Nobel da Literatura em 2020.

Sobre o autor

Daniel Joana

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