Desde Julho que se faziam anunciar. Tímidas, no início, fingindo rebentos de folhas. Depois crescendo, enovelando-se sobre si próprias como fetos vegetais, concentradas numa intensa, mas oculta, vida interior. A minha japoneira estava grávida e eu mal podia esperar para a ver florir. Vigiei-a com desvelo, reguei-a, protegi-a do sol e do vento, das aranhas e dos insectos durante os longos meses de gestação. Vinha espreitá-la ao acordar e despedirme dela ao anoitecer. Mas a japoneira parecia tão imóvel, tão suspensa no tempo que me cheguei a convencer de que só no próximo ano daria flores. Até que, uma destas manhãs, elas aí estavam, as camélias. De repente, a Alba plena explodira em flor. E a alvura plena das suas flores tinha a luminosa plenitude do amanhecer. A quietude da neve da minha infância. Uma promessa de primavera.
Fascina-me este modo simples de ser flor. De se entregar ao olhar do outro, sem artifício nem pudor. Olho as camélias recém-nascidas e a sua delicada perfeição comove-me. A perfeita simetria das pétalas, os círculos concêntricos de uma geometria antiga, a suavidade da textura, a transparência, a discrição de uma flor que não precisa de perfume para atrair o olhar. Uma flor resistente ao frio e às geadas. Um luxo da natureza em pleno inverno.
A beleza e a simplicidade da camélia branca seduziu Coco Chanel numa manhã de Étretat, em 1913, ainda antes de as nuvens da guerra se adivinharem no horizonte. A fotografia registou o momento em que posa para o fotógrafo, sorrindo, de camélia à cintura ou de perfil, olhando o mar. Desde esse dia, Gabrielle não parou de a usar e recriar nos seus adereços e modelos, tornando-a o símbolo eleito da famosa casa de moda francesa. Penso em Virginia Woolf atrevendo-se a sair de casa para ir comprar flores e chocolates quando as bombas começavam a explodir nos céus de Londres e ela ignorava ainda a dimensão do pesadelo. Coisas urgentes em tempos de guerra, relíquias de uma felicidade perdida. Teria Virginia comprado camélias? Seriam elas brancas como a paz ausente e desejada?
“Depressa e bem há pouco quem”, diz o aforismo popular, e dou por mim a pensar que há verdades que vão muito para lá do humano e são igualmente válidas para as flores. A Alba plena é a flor da lentidão. A sua perfeição é o íntimo labor do tempo, do lento cinzel de um tempo desconhecido do nosso tempo veloz. Um luxo.
Olhá-las atentamente nos olhos, deveria acordar em nós, amanhecer em nós, um desejo de lentidão capaz de nos levar ao encontro das cores, das texturas, perfumes, mas também dos sabores, dos sons e das múltiplas vozes do mundo. Sobretudo neste tempo de inverno em que sobre os céus europeus se anunciam nuvens que ameaçam tingir de sombra a luxuosa alvura das camélias.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia