A verdade faz-se na sociedade

Escrito por Fidélia Pissarra

O António tem quarenta hectares de bom pinhal no meio de nada, a última vez que pensou em vender os pinheiros com vinte anos, davam-lhe cerca de 1.500€ por hectare. 60 mil por vinte anos de posse da terra esquecida nas serras do Centro de Portugal não o convenceram. O Manuel, primo do António, é que não esteve para esperar 20 anos por 60 mil euros e preencheu os hectares, da sorte que lhe calhou, com eucaliptos. O José, primo dos dois, não esteve cá para florestas e vendeu-lhes a sua encosta. Investiu o dinheiro da venda nuns papéis do BES com o resultado que se viu. O fogo veio e, em menos de um ai, queimou os eucaliptos do Manuel e, ainda mais depressa, os pinheiros do António. Agora, quando se juntam na aldeia, os conterrâneos riem-se à socapa do capitalista José para, de imediato, lamentarem a perda das árvores dos seus primos. A um não reconhecem direito a reclamar do Estado, que não zelou pelos seus interesses, mesmo não nos tendo custado nada. Aos outros lamentam a ausência do Estado, que não zelou pelos seus interesses, mesmo tendo-nos custado não sei quantos aviões de combate a incêndios. Do braseiro, que só se ficou pela ameaça de os matar porque, entretanto, outros morreram, ninguém fala. Por absurdo que pareça esta é a normalidade do Verão acima do Tejo.

Pois bem se esta normalidade, digamos que pirómana, já traduz graves problemas do foro psiquiátrico, nem sei que grau de psicopatia se há de atribuir a esta sobrevalorização do “sacrifício” da vida num estado de direito, laico e moderno? Criticam-se, e bem, os estados que mandam crianças e jovens morrer em guerras despropositadas e ilegítimas, sob o pretexto de que o céu lhes há de reconhecer o sacrifício, mas o sacrifício dos nossos jovens bombeiros não parece merecer o reparo de ninguém. É como se a santidade da profissão fosse impermeável à critica e à razão e a morte de alguns ajudasse a manter essa aura sobre os outros. Pelo menos que eu saiba, nunca nenhum comandante dos bombeiros foi julgado ou condenado pela morte de um seu subordinado. Se os militares são responsabilizados sempre que um soldado morre sem razão, porque é que quando morre um bombeiro só vão atrás dos incendiários ou, pior ainda, atrás dos incêndios? Na era da tecnologia para tudo e mais alguma coisa, não há tecnologia que possa prever a evolução de um fogo, estudar-lhe o feitio e antecipar a consequência? O que é que jovens com 20 anos andam a fazer no meio das chamas, entregues à sua sorte? Não há requisitos para se ser bombeiro? Aqueles cursos e formações todas, com alguns dos bombeiros que costumam frequentá-los a nunca terem posto os pés no incêndio florestal, servem para quê? Qualquer resposta, que não incorpore uma nova verdade sobre o assunto dos fogos e dos bombeiros, só confirmará que a sociedade, pelas razões mais esconsas, arranja sempre forma de legitimar os próprios absurdos. Neste caso, o doloroso absurdo da morte de uns quantos, a quem convencem que são heróis, pondo-lhes um capacete na cabeça e uma mangueira na mão, a cada Verão que passa.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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