A simbologia de uma estátua

Escrito por Hélder Sequeira

«Se pretendemos uma imagem atrativa da nossa cidade, não se pode continuar a descurar pequenos pormenores que não passam desapercebidos aos visitantes e outrossim aos residentes»

A 6 de dezembro de 1185 D. Sancho I subiu ao trono de Portugal, sendo aclamado rei três dias depois na cidade de Coimbra. Uma efeméride que, nestas anotações de hoje, pretendemos sublinhar dada a ligação histórica deste monarca à cidade da Guarda.

Recordamos que em 27 de novembro de 1199 D. Sancho I outorgou à Guarda carta de foral, documento através do qual os seus habitantes recebiam diversos privilégios, sendo igualmente concedidos incentivos ao povoamento desta zona fronteiriça, aliás dentro da estratégia defendida pelo rei português.

O seu nome, como é do domínio público, está consagrado na toponímia guardense, numa artéria que, localizada em pleno centro histórico da cidade, liga a Rua Direita ao Largo do Passo do Biu.

D. Sancho I, segundo rei de Portugal e cognominado como O Povoador, era filho de D. Afonso Henriques e D. Mafalda de Sabóia; nascido em Coimbra, em 11 de novembro de 1154, o herdeiro da coroa ficou bem cedo ligado à vida político-militar do reino português, com uma associação efetiva à governação, a partir de 1172.

Dois anos depois, o futuro rei casou com D. Dulce de Aragão (filha da Rainha de Aragão e do Conde de Barcelona), continuando a assumir responsabilidades decorrentes do seu estatuto real; em 1178 é D. Sancho que comanda uma expedição em território sob domínio muçulmano, incursão que chegou aos arredores de Sevilha.

Após a morte do pai, D. Sancho ficou à frente dos destinos do reino português; a reorganização do território português e a defesa das localidades junto às, ainda, indefinidas e instáveis fronteiras com os domínios de Leão e dos muçulmanos (a sul), foram duas das suas primeiras prioridades. Estas articularam-se com a imperiosa necessidade de incrementar o povoamento e defesa das zonas conquistadas.

Assim, promoveu a vinda de colonos estrangeiros, doou terras e fortalezas às ordens militares, criou concelhos e mecanismos de administração pública, fomentou o surto económico e agrícola e concedeu forais a cerca de cinco dezenas de localidades, nomeadamente à Guarda, em 27 de novembro de 1199 (documento que segue o modelo do foral de Salamanca).

Antes desta data (1199), a Guarda confinava-se a uma pequena comunidade «guardada por uma pequena atalaia ou torre – uma guarda – que vigiava a circulação de gentes e bens que percorriam a via colimbriana, o principal eixo de penetração no planalto beirão», como escreveu Helena da Cruz Coelho.

A Guarda assumiu, deste modo, uma posição estratégica de vital importância na defesa da linha fronteiriça da época, protagonizando a centralidade de toda a vasta região envolvente, sobre a qual afirmava a sua influência direta; a sua notoriedade como centro urbano foi reforçada com transferência (entre 1201 ou 1202) da sede do Bispado da Egitânia, cimentando assim o seu estatuto de cidade.
Esta reorganização da jurisdição religiosa apoiou os propósitos régios ao nível do fortalecimento e valorização da zona fronteiriça.

Com a conquista de Silves (que viria a perder algum tempo depois) em 1196, D. Sancho passou a intitular-se Rei de Portugal e dos Algarves. A sua permanência no trono foi atravessada por diversas contendas militares, fomes e pestes, em especial no período entre 1192 e 1210.

As lutas com o vizinho reino de Leão e sobretudo os constantes prélios com os almóadas (dinastia marroquina que dominava as terras da Península Ibérica sob alçada muçulmana) ocuparam muitos anos do reinado deste monarca português, que teve ainda de se debater com alguns sérios problemas levantados pelo clero (vejam-se os conflitos com D. Martinho Rodrigues, Bispo do Porto, e também com D. Pedro Soares, Bispo de Coimbra, com os quais se reconciliou no último ano do reinado).

A célebre cantiga de amigo “Muito me tarda/ o meu amigo na Guarda” foi durante muito tempo associada a D. Sancho I que a teria, segundo alguns autores, dedicado a D. Maria Pais Ribeiro (a célebre Ribeirinha, de quem teve seis filhos); estudos mais recentes afastaram-no da autoria dessa poesia embora seja verdade que não foi alheio às necessidades de incremento cultural, como o comprova o apoio dado a alguns elementos do clero que estudaram além-fronteiras.

D. Sancho I faleceu em Coimbra em 26 de março de 1211, tendo sido sepultado no Mosteiro de Santa Cruz.

A história da Guarda está indissociavelmente ligada ao segundo rei de Portugal; na Praça Luís de Camões (igualmente conhecida por Praça Velha) a sua estátua (cuja deslocalização tem suscitado os mais variados comentários e acesa controvérsia) é um dos símbolos citadinos mais visitados.

Se o local escolhido para “acantonar” a estátua do segundo rei português deve merecer uma análise serena e o confronto entre as soluções deva privilegiar uma inserção e contextualização naquele espaço com a merecida dignidade, por outro lado deveriam ser tomadas as medidas adequadas para o seu devido destaque naquela que é a sala de visitas da cidade.

Começando, desde já e sem demoras, pela iluminação noturna da estátua – que não configura grande dificuldade técnicas ou exige orçamentos significativos – de forma que não seja acentuada a ostracização a que tem sido votada; prosseguindo, sem hesitações, com a resolução definitiva do estacionamento desordenado de veículos, em redor da Catedral.

Se pretendemos uma imagem atrativa da nossa cidade, não se pode continuar a descurar pequenos pormenores que não passam desapercebidos aos visitantes e outrossim aos residentes. Até porque, como referiu Mia Couto, uma cidade «não é apenas um espaço físico» mas assume-se como «o centro de um tempo onde fabricam e refabricam as identidades próprias».

Não esqueçamos, pois, a nossa identidade.

Sobre o autor

Hélder Sequeira

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