A secreta vivência da poesia

Escrito por João Mendes Rosa

«Cada neurónio estabelece contacto com outros milhares de neurónios, como fios ligados entre si como um painel de operações telefónicas»

Subitamente, clamava no seu íntimo aquela voz de sempre. E ela rumorejava, toda espanto e desassossego, como seria possível depois das doses inconcebíveis de antipsicóticos – durante meses a fio – ainda fosse possível sentir, troando por dentro como artilharia desenfreada, aquelas repisadas palavras que a atormentavam desde a primeira infância… Tanto que a vibratilidade desse eco a fazia regressar de certo modo aos tempos da meninice, e não era inteiramente desagradável – bem lhe custava admiti-lo! – passada a angústia inicial, esse som metalino, oceânico, que espantosamente a enchia de saudades pelos únicos momentos em que fora feliz na vida. Que importava se era maleita ou imaginação, aquele amplexo da memória, aquele travo a contentamento, convertendo a vida toda num instante, num instante passado, como as pedaladas inesquecíveis daquela bicicleta azul que um incidente feliz – sim, feliz! – tornou eterno na cicatriz denticulada no antebraço. Não, não era a voz dulcíssima de sua mãe a trautear barcarolas avoengas; nem o deleitável brado monocórdico do pai – de cujo sorriso lhe nasciam beijos incessantes sempre que a chamava meu amor ou minha ternura! Nem o cicio cândido do irmão, desaparecido no auge dos seus precoces dezassete anos com um linfoma. Regressavam sempre que abria um livro – daqueles livros em que as palavras bailam e rodopiam depois num frenesim indizível dentro da cabeça – essas inquietantes falas, ou sempre que olhava o horizonte marinho ao entardecer com um pouco mais de desatenção derredor, abstraindo do som, da consciência, da lucidez, tão-só inalando o odor a revivificação, para lhe chamar alguma coisa que fosse medianamente intelectível e não a avocasse totalmente na demência. Na verdade, essas vozes não vinham bem do seu interior, radicavam na sua verdadeira razão de ser; existiam para lá dos impulsos eléctricos do seu cérebro de cuja intensidade os clínicos diagnosticaram a mazela há tantos anos: – A menina aprenda a tabuada; esse bê-á-bá na ponta da língua; que bem sabe a menina aplicar o Teorema de Pitágoras; a menina agradeça a Deus Nos’Senhor o seu talento para a Química Aplicada: os 19 valores obtidos no curso de Biociências Moleculares University of Science and Technology, demonstra vocação! Vem do latim, “vocatio”, é um chamamento. Tem a vida pela frente, menina, não se perca! Por isso, ria-se, agora, ao repetir em murmúreo o que lera nos compêndios durante anos e anos: o cérebro é composto de mais de dez biliões de células individuais denominadas neurónios. E em crescendo, controladamente acelerado, continuava, de olhos cerrados: cada neurônio tem uma fibra longa única, denominada axónio, que transmite informações aos outros neurónios… Cada neurónio estabelece contacto com outros milhares de neurónios, como fios ligados entre si como um painel de operações telefónicas. Bem sabia ela que os sintomas de psicose eram consequência de uma atividade excessiva das células sensíveis e tinha consciência ser prejudicial exercitar-se naqueles propósitos; era como se chamasse a si a perturbação, o agravo da doença maldita – pensavam eles, os sábios, os senhores da verdade, os donos da normalidade. Riu! E de sentidos túmidos riu ainda mais, quando pensou em todos esses infelizes do diagnóstico, os preceituários de milagres químicos. Riu-se de todos os que pudessem categorizar os seus sentimentos, arrumando-os nas prateleiras das ciências médicas: alucinações, delírios, pensamento desorganizado, distúrbio comportamental cognitivo. Riu agora desprendidamente, enquanto descalçava os sapatos e fincava os pés alvos na areia. Uma comoção mais intensa tornava cada vez nítidas aquelas vozes. Sentia a voluptuosidade de quem embarca numa viagem nupcial mas sem a carnalidade que o desejo desfeia. O vento fazia tilintar as arrecadas de pechisbeque e os cabelos rebelavam-se do atilho, como na estatuária grega do período arcaico e uma gota de sal toldou-lhe os olhos lindos de ninfa. Da andrajosa sacola de pano – que a acompanhava desde a meninez – sacou papeis amarrotados e a caneta-de-bico-de-pena deslisou, trôpega, sobre os mesmos, postados nos joelhos justapostos, trémulos. Sentia chegado o seu momento de emancipação! E de uma penada desvestiu as farpelas da dor e da desdita para sempre:

Eis a mácula lumínea que me faltava para brilho

Essência e odor sagrado que do turíbulo se evade

Falai por mim íntimos indolores, exultai na liberdade

Sou quem nada deve, nem busca futuro ou trilho!

O Sol retraiu-se como sempre, sem perturbação alguma. E o mar calou o olhar vazado na flamante calmia de um espelho imenso. Só eu soube como e porque nascera mais uma estrela. E dei-lhe as boas-vindas em sussurro.

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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