Dois dos nomes maiores da literatura mundial eternizaram as duas faces de uma dicotomia secular que persiste no país que os viu nascer e que se manteve até aos nossos dias: a Rússia do modo de vida tradicional (Dostoiévski) e a Rússia aberta ao espírito ocidental (Tolstói).
A ascensão política de Vladimir Putin, atual Presidente da Rússia, é digna das páginas da melhor ficção alguma vez produzida. A forma como se tem eternizado no poder, por seu turno, vai em sentido diametralmente oposto à tendência da cultura democrática dominante. Depois da rotatividade entre os cargos de presidente e de primeiro-ministro, na semana passada 78% dos eleitores aprovaram uma retificação à Constituição que lhe permitirá estar em funções até 2036!
Dir-se-á que a Rússia está mais do que acostumada a “donos disto tudo”, desde os czares aos líderes soviéticos. Mas Putin, além de exercer o poder numa democracia recente e ainda pejada de tiques totalitários, tem a vantagem de ser um czar sem ter de satisfazer uma aristocracia ociosa e um líder supremo sem ter de prestar contas a uma máquina partidária burocrática, mesquinha e obsoleta.
Sob a égide de Putin, está em curso um reposicionamento da Rússia no pódio das superpotências mundiais. Do processo sobressai claramente a sua abordagem conciliadora e potenciadora da dicotomia ilustrada pelos génios literários de Dostoiévski e Tolstói. Por um lado, temos uma exaltação exacerbada do passado glorioso da Rússia, sem complexos em relação a qualquer período histórico, regimes ou personagens. Por outro lado, a abertura da Rússia ao Ocidente tem tido lugar sobre o leito do “pecado original” cometido pela maioria dos países ocidentais no pós-1991: a perceção da Federação Russa como um estado sucessor da URSS e não como o estado pró-ocidental que colocou um fim à URSS.
A tudo isto temos ainda de acrescentar o reacender do ímpeto expansionista e a vontade de voltar a exercer a sua influência sobre os países vizinhos: o conflito com a Geórgia (2008), a anexação da Crimeia (2014) e a interferência na Síria (2015-); o reforço da influência na Europa de Leste, no Médio Oriente e as recentes aproximações do Egito e da Turquia.
Em 2005, Putin afirmou publicamente que a queda da URSS foi a «maior catástrofe geopolítica do século XX». Com a reaparição em força da Rússia no mapa geopolítico internacional, estaremos a caminho de uma reedição da Guerra Fria, agora desprovida da confrontação ideológica (capitalismo vs. comunismo)?
Guerra e Paz, Crime e Castigo: a Guerra Fria terminou em 1991 e a Pax Americana que se seguiu foi “sol de pouca dura”; os EUA escolheram abusar da sua posição hegemónica, adotando uma política externa ruinosa que privilegiou quase sempre o confronto armado às negociações diplomáticas, desrespeitando e descredibilizando as instâncias internacionais competentes e tornando o mundo num local menos seguro para todos.