A rica teve um menino/ A pobre pariu um moço

«(…)depois surgiu-lhe a dúvida se Orwell não teria razão e não seriam uns mais iguais que outros»

Os dois versos de uma bem conhecida (e musicada) quadra de António Aleixo, escolhidos para ilustrar este texto, servem que nem uma luva a situações que se vivem no ensino em Portugal.

Dúzia e meia de catraios ocupavam as carteiras de uma sala de uma qualquer escola deste país. Dúzia e meia de catraios encafuados em casacos de Inverno, abotoados até ao limite, que isto de ter aulas de porta aberta tem que se lhe diga… Mas pronto, Covid oblige… (mais uma vez este companheiro que ninguém escolheu a atravessar-se por aqui…).

Manhã bem cedinho, quando ainda o frio atravessava luvas e garruços sem pedir licença, o professor pergunta, voz abafada por detrás da inseparável máscara:

– Então, meninos, quem não fez os trabalhos de casa combinados?

Esticam-se dois bracitos erguidos ao teto, um em cada extremo da sala. O Zé (chamemos-lhe assim), encolhido por um receio profundo de ouvir “sermão e missa cantada”, parece ainda mais pequenito do que realmente é.

– Então Zé – atira o professor, “com espinhos na voz” – não fizeste?… Sabes que vais ser penalizado por isso, não sabes?…

O Zé encolhe-se ainda mais, aninhou-se na cadeira como que a querer desaparecer devagarinho, bem devagarinho, para que ninguém dê conta. Depois, num sussurro quase inaudível, desculpa-se:

– Sabe “stôr” (é assim que a maioria se dirige aos professores), não tive tempo. Tive que ir ceifar erva, tratar do gado, rachar lenha que levei para casa e, ainda por cima, andei até às dez da noite a ajudar a carregar um trator com fardos de feno. Depois comi uma “sopita” e deitei-me que já não podia mais. Desculpe lá “stôr”!…

O professor pareceu compreender. De momento nem uma reprimenda. E os olhos do Zé pareceram ficar, assim de repente, bem maiores e com um brilho que se não vira ainda. Virou-se então para o João (ou outro qualquer nome):

– E tu, João? Também levantaste o braço…

– Oh, sabe “stôr”, eu bem queria ter feito, mas… Olhe, verdade, verdadinha: a minha prima fazia anos e, como tinha convidado a família, fomos comprar-lhe uma prenda, por sinal o último modelo de um telemóvel. Topo de gama “stôr”, topo de gama… Depois fomos jantar a um restaurante. Que restaurante!!!… Quando cheguei a casa, já depois de ter passado um bom bocado a jogar no tal telemóvel, que é uma verdadeira máquina, era tão tarde que não me apeteceu fazer mais nada a não ser “ir para vale de lençóis”.

Entretanto já o tempo de aula estava no fim. O professor mandou que arrumassem e que saíssem coisa a que ninguém se fez rogado e que não foi preciso repetir. Ia já o professor a sair quando ouviu um ruído atrás de si. O Zé, cabisbaixo, olhos no chão, estava imóvel em frente ao quadro.

– Sabe, “stôr”, olhe que eu não lhe menti…

E estendeu as mãos, pequenitas, de palmas para cima, mostrando os vincos bem marcados dos baraços que atam os fardos do feno. O professor, sem dizer palavra, pôs-lhe a mão no ombro enquanto uma lágrima atrevida lhe escorria por detrás da máscara. Isto enquanto pensava com os seus botões: “Vá lá, vá lá, que a escola é inclusiva e o ensino é igual para todos…” depois surgiu-lhe a dúvida se Orwell não teria razão e não seriam uns mais iguais que outros…

Ainda bem que é Natal!!!…

PS: Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Sobre o autor

Norberto Gonçalves

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