“Leer, leer, leer; ¿seré lectura
mañana también yo?
¿Seré mi creador, mi criatura,
seré lo que pasó?”
Miguel de Unamuno
“Ingrediente fundamental do bem-estar” lhe chamou C. S. Lewis em “An Experiment in Criticism” (“A experiência de ler”, 1961); as endorfinas que muitos buscam – e bem – no ginásio, há quem porfie em encontrá-las no momento solitário e sublime da leitura. É certo que são cada vez menos as pessoas dotadas de sensibilidade literária: o vulgo, desfortunadamente, nega-se a reconhecer nela uma atividade humana como qualquer outra, daquelas que têm consequências visíveis e materializáveis como a jardinagem e o “jogging”, por exemplo. Para essa maioria, “ler” equivale apenas a uma necessidade sucedânea de qualquer obrigação prática ou utilitária – como o folheto de instruções de um eletrodoméstico -, não a um ato espontâneo, libertário e convicto. E essa ideia vinga, sobretudo, porque a opinião pública desconhece que ler é mais do que um exercício imediato de entretenimento pessoal – ler é visitar outros universos para nos superarmos a nós mesmos (C.S. Lewis dixit) e buscarmos a nossa sempre inalcançável plenitude, uma prática humana inconclusa e sem paralelo.
Numa altura em que o lixo livresco nos bombardeia e o pouco que se lê nada tem de literário – mercê da compleição meretrícia das políticas editoriais (já para não falar das abstrusas expressões escritas virtuais) – para quem escreve, ler corresponde a um profundo aprendizado, um encontro substancial connosco mesmos, que nos tonifica o espírito e aproxima à noção totalizante da humanidade. Ler pressupõe um encontro com o belo, com o harmonioso, e, por exclusão de partes, distancia-nos do vulgar, do impuro, do malicioso; é incrementar o melhor de nós, explorarmos os sentimentos mais recônditos e despertar a capacidade de nos comovermos ou deslumbrarmos com situações que a celeridade da vida nos quer vedar: a revelação de um mundo que os nossos pés reprimiram, apenas porque, sem nos darmos conta, nos fomos tornando demasiado pesados…
Há dias, no metropolitano, deparei-me com um jovem a ler e a fazer anotações numa velha obra de Hipólito Raposo – que, por sinal, estudara no Seminário da Guarda e do qual fora expulso por questões ridículas. O jovem leitor deglutia sofregamente “Ana a Kalunga”: uma obra de arqueologia literária, que já ninguém lê – mas uma lição vera de boa prosa. Tentado a abordá-lo, sustive o ímpeto. Quem sabe se não o iria arrebatar a um sonho profundo e lindo, interromper a sensação da descoberta, essa música interior que as páginas exalam – Para usar uma expressão de Luís Racionero do seu belíssimo ensaio “El arte de escribir”. Encontrar prazer na leitura, folhear um livro como quem acaricia cada página, é atingir um estado quase iniciático de sensações. E há autores que escrevem precisamente para transmitir o belo literário e não tanto as ideias: Poe, Gauthier e Baudellaire, por exemplo, preocupam-se acima de tudo em escrever belamente mais do que transfundir para o papel ideias sábias e úteis. Neste particular a poesia tem, aparentemente, uma vantagem: cadência, ritmo, fonética: o bailado musicado das palavras cumpliciadas. Mas há muito que Rimbaud ou Mallarmé se encarregaram da fusão sublime dos géneros, com a criação da prosa poética, para nosso deleite e volúpia de espírito.
Conta Fernando Pessoa que chorou a primeira vez que leu Chateaubriand. E chorou, porque nunca mais poderia ler Chateaubriand pela primeira vez… E quantos de nós não deixámos guardado um livro, para o lermos apenas numa ocasião especial?
* Escritor