Habituamo-nos à pobreza, à mentira e ao cinismo e já nem cuidamos de os combater. Habituamo-nos ao desencanto dos dias ao som dos “aguentas” debitados por quem nunca esteve para aguentar o que quer que fosse e nem nos incomodamos em mandá-los ao lugar a que ninguém quer ser mandado. E se não forem esses extirpadores da dignidade a convencer-nos que toda miséria é normal, será uma muito estimada consciência cristã. Porque, mais convincente do que os “aguenta” de gente socialmente muito cotada, só a vontade divina de que assim seja. Coisas do destino!
Até que um dia alguém se lembra de nos lembrar que não podemos permitir que se atropelem princípios, regras e leis e nos obriga a encarar de frente todos os que, para legitimarem a sua estimadíssima vidinha, pretendem convencer-nos que tudo o que nos acontece é fruto das nossas escolhas. Assim animados, desatamos então a nossa irreverência para lhes contrapor que ninguém escolhe ser vítima, ninguém escolhe ser pobre ou improdutivo. Ninguém está predestinado a sofrer e nenhum sofrimento é uma prova divina para um qualquer campeonato de sacrifícios com vista a ganhar o céu. Embora nos queiram convencer de que por detrás de tudo há uma mão divina, o dito argumento é, invariavelmente, tecido por mãos que de divino nada têm.
Num tempo em que lá pelas Américas, à semelhança das Arábias, onde todas as atrocidades se fazem em nome de Deus, há presidentes em exercício que falam com os seus antecessores através de passarinhos, ministras que falam com Jesus num pé de goiaba, ostentam diplomas, alegadamente académicos, obtidos na missa e quem acredite que foi Deus que quis o tresloucado dos muros a dirigir a América, não seria má ideia lembrar outros tempos em que, por cá, os reais poderes governativos eram conduzidos de acordo com as regras da Igreja. Ao aproximar-se novo ciclo eleitoral, com o chefe da banda prestes a debandar, face à apetência bispal por tudo quanto seja evento inaugurativo e político, talvez seja oportuno pedir-lhes alguma contenção simbólica. Porque, não sejamos ingénuos, nada, na forma de qualquer manifestação, é inocente ou inócuo. A assiduidade de bispos em eventos de cariz político, por maioria de razão, menos o será. Para que não nos venha a acontecer o mesmo de outros tempos e de lá, do outro lado do oceano, urge expurgar a atividade política destes mimetismos religiosos. É que, já se sabe, isto de divindade e destino, até aos ufanos banqueiros que nos interpelam a “aguentar” é mais curto que um saltinho de pardal.
Terá, o nosso bispo, coisas bem mais sensatas para fazer do que atirar água benta a todo o tijolo que mexa. Creio! Para além de que um bispo, socialmente útil, começará primeiro por abençoar os recursos de que é guardião em prol das pessoas. Contudo, confessando-me arredada dessas ações, todos os ecos que me chegaram até hoje vão em sentido contrário: continua a haver por cá gente sem casa e casas sem gente.
Por outro lado, políticos a precisar de muleta bispal, num país laico, também não me parece lá grande promoção deles próprios. Por isso, lembrem-se do que o próprio Papa diz – «mais vale ser ateu bom que beato hipócrita» – e antes de qualquer outra coisa sejam bons! Bons candidatos e bons políticos. O povo, todo, merece!