A muralha de aço

Escrito por António Ferreira

É perigoso reunir mais de trinta mil pessoas, mesmo ao ar livre, mesmo com distanciamento social, mesmo com máscaras e higienização de espaços. Foi, afinal, ao ar livre que o vírus que causa a COVID tem regressado em força este Verão, recrudescendo a pandemia em inúmeros sítios apesar de toda a informação existente e de tantas máscaras e frascos de álcool-gel.
É por isso que não há por enquanto espetáculos de música ao vivo, que se cancelaram os Jogos Olímpicos e que os jogos de futebol não têm público.
Corrijo: não há música ao vivo, a não ser na Festa do Avante. É que à Festa do Avante se aplicam regras que se não aplicam aos outros. A COVID-19 vai embater na muralha de aço da Quinta da Atalaia e ninguém vai ficar contaminado. A não ser que seja por malefício da reação. O Sérgio Godinho não pode cantar para trinta mil pessoas no Estádio da Luz, mas pode fazê-lo na Festa do Avante. Como dizia o porco chefe em “Animal Farm”, de Orwell, a súmula cínica do estalinismo, «os porcos são todos iguais, mas uns são mais iguais do que os outros».
Esquecia-me, há uma grande diferença: a Festa do Avante contém um comício, imune às regras aplicáveis a todos os outros eventos e acontecimentos em que se podem reunir pessoas, mesmo àqueles em que se tomam (também) as mais rigorosas precauções, se multiplicam as máscaras e se esticam os limites do distanciamento social. É como se a Festa do Avante tivesse uma preponderância mágica sobre o vírus, como se a força conjunta dos camaradas, como se a muralha de aço da margem Sul fosse suficiente para afastar os perigos e trinta mil gargantas a gritar palavras de ordem, protegidas pela sabedoria do Partido, pudessem conjurar todos os males e também este.
Não me entendam mal. Acredito, como o PC, que há que oferecer esperança às pessoas, que dizer-lhes e mostrar-lhes que é possível atingir um mínimo de normalidade nestes tempos tão difíceis é um primeiro e importante sinal. A depressão coletiva só pode originar mais depressão coletiva. Sei tudo isso, mas o coronavírus não sabe. Se a festa da Quinta da Atalaia for a origem de mais um surto e este for exportado para todo o pais, ou pelo menos para o país do Partido, vai ser uma tragédia – para o país e para o Partido.
É claro que pode correr tudo bem e a festa ser um sucesso, político, financeiro, cultural. Pode acontecer, mas isso virá sobretudo das esperanças, por uma vez cumpridas, do que chamam realismo mágico.

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António Ferreira

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