A Justiça de cócoras

«Sócrates não tem razões para rir…»

Ouve-se, lê-se e não se acredita. Não pode ser. Descansam-se os olhos e voltamos a ouvir e a ler.
As três horas da leitura das quase sete mil páginas da instrução, seguidas em direto como nunca, com a atenção e a estupefação de todos, fez explodir a Operação Marquês. Depois de nove anos de investigação, o Ministério Público foi arrasado pelo juiz Ivo Rosa. Mas a procissão ainda vai no adro.
A forma como o juiz se exprimiu e a interpretação da maioria dos “analistas” levou a que se interpretasse a acusação como se de uma sentença se tratasse. Mas não é. Para já, dos 189 crimes o juiz só validou 17. O Ministério Público irá recorrer e os processos validados vão já para julgamento – e sobre esta parte, José Sócrates que não tenha ilusões: será mesmo julgado.
Porém, entre a «verdade material», as «nulidades insanáveis» ou as «ausências de explicações lógicas», a construção apresentada está carregada de procedimentos burocráticos. Podemos achar que há quem pague milhões sem esperar receber nada em troca, porque os indícios e as «suspeitas», sem provas inequívocas, são facilmente desmontadas. Como foram. Mas o que vimos e ouvimos foi um juiz sempre preocupado com o formalismo da lei, a prova, o facto. Ivo Rosa pode ter prejudicado a imagem da Justiça por anos: muito mais do que o tumulto popular, o cidadão ouviu as gravações, foi sabendo dos esquemas dos protagonistas, as vidas milionárias que levavam, as negociatas feitas e, depois de tudo, viu como afinal entre prescrições e fragilidade de investigação o processo ruiu.
A palavra “prescreveu” foi repetida 305 vezes por Ivo Rosa nas suas longas três horas. E o cidadão tem de se perguntar como é que crimes como o negócio da PT, da OI ou os negócios do Grupo Lena prescreveram? E como é que é aceitável que o Ministério Público tivesse andado anos a investigar crimes prescritos? E depois de todos termos percebido a vida faustosa de José Sócrates, paga por um amigo, com dinheiro de origem desconhecida, com negociatas e feitos desconhecidos, tudo o que supostamente configura corrupção, mas que afinal já prescreveu. Ivo Rosa determina, de acordo com o acórdão do Tribunal Constitucional de 6 de fevereiro de 2019 (nº 90/2019), que considera que os crimes de corrupção começam na data em que se iniciam e por isso prescreveram, e ainda que continuem durante anos é a data inicial que define o tempo para prescrição. Bendito Constitucional! Ou seja, bem podemos clamar contra Ivo Rosa nos jornais, nas redes sociais ou com petições, mas só ouvimos a palavra prescrição 305 vezes porque os prazos da corrupção na Operação Marquês foram definidos pelo Constitucional, cujos juízes, como sabemos, são indicados pela Assembleia da República, pelos partidos, pelo PS e pelo PSD. O “sistema” que deveria ter a capacidade de contruir uma moldura penal para a corrupção inatacável acaba por destruir o maior processo contra a corrupção da nossa história; o “sistema” que deveria garantir os direitos, liberdades e garantias parece proteger os mais fortes; o “sistema” dominado pelos partidos ou por “forças ocultas” alimenta a impunidade e marcou negativamente a imagem da justiça por muitos anos. Como podemos respeitar as decisões judicias, quando perante o «grande crime» o caminho é este?
E quando o cidadão se pergunta sobre os direitos, liberdades e garantias que têm de estar presentes em todos os atos da justiça, fica uma vez mais com a sensação que não é igual para todos. Resta a expetativa sobre o avanço célere do julgamento dos 17 crimes que o juiz Ivo Rosa mandou para julgamento sem delongas. Sócrates não tem razões para rir…

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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