A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Há o cimo do morro e a praia em baixo. Um homem desventrado, por onde o som do mar entra e sai, faz guarda à loucura. O inverno a querer despir dissimuladamente as roupagens insufladas de vento. Rasgos. Quase cicatrizes vincadas no dobrar de cada gesto. O solstício consente-lhe essas ousadias. Enfunar velas, virar veleiros e, em certas horas do dia, destruir amuradas. Os respingos subiam em gotículas aspergidas, hábeis na expiração do negrume.
A praia lá em baixo saciada de vagas apressadas. O mar a sumir em si próprio, vertiginosamente. Uma cobra prateada a alagar o areal. A frescura rápida que clareia os olhos. E aquela luz inicial de um espaço sem tempo devolvida ao olhar. Demora-se o corpo nos dedos indolentes, nas maçãs do rosto que procuram suster as pálpebras pesadas dos duelos da noite. Há sempre combates privados quando se dorme junto ao mar. Os sonhos são casas esvaziadas de onde os proprietários se evadem.
O mar é uma esfinge desmesurada onde os amantes se reencontram depois do naufrágio. Chegam cansados de desagastar as margens de um rio só seu. Conhecem bem os labirintos e os vaus. Deslizam pelos rápidos em jangadas de mãos dadas. Às vezes agarram-se aos destroços e desaguam na pele rasgada por galhos secos. O tempo retém-lhes a vontade nos bancos de areia e pedras roladas. Ali estiram os músculos das braçadas da alma.
Há quem escreva hinos ao mar, exaltações em madrugadas de espuma. Como se o despertar fosse um rugido a engolir a areia. E o azul de aço a trespassar o corpo. Um gume cinzelado em forjas ancestrais. Palavras de brumas e marinheiros de veias grossas, cordas corridas, sem nós. Escreve-se por urgência. Odes que desviam montanhas e planam na superfície das aves que buscam a penumbra dos dias. Memórias de espíritos esvoaçantes em cortinas de um céu logo ali.
A esperança de que alguém saiba o segredo das tintas com que os primeiros homens inventaram a arte. Na gruta húmida, o tecto escorre veados e cavalos sobre as nossas cabeças. A insignificância do ser repete-se a cada dia numa tela insegura estendida na terra. Ah, a magnificência do que se foi. O calor com que se afundaram as mãos nos pigmentos dos minerais e o ensurdecedor silêncio do carvão. Os rostos tocados com a gravidade das marcas de um tempo a sangue e negro.
Chega-se cedo ao morro. O equinócio não está longe e consente que o dia se faça. Os dedos entrelaçados e um arrepio a abalar os corpos. A playa de los loucos é um cântico entre o soluço e o clamor. O guardião desventrado não é mais do que um sussurro a extinguir-se. Um lume roubado. As cinzas da noite que alguém ateou. Num arrojo delineado nas mãos testamos o vôo. Planamos. A água é uma imensa aragem acetinada. Como resistir à imersão sabendo que um muro branco e morno se vai esfriando?
Beijas-me. Julgamos ser o tempo da fruta madura, dos corpos esguios num funambulismo espectacular. Desde o topo do arame viajamos no delírio dos apátridas. O livro em pedra continua na página de sempre. Contemos o apelo do sal sentados na lucidez das ondas. Do leito vacilante sobre o vulcão recriaremos as microgotas iniciais.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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