A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Recolhia pedras que a água do rio alisara e acomodava-as de forma a poder ajoelhar-se e beber da nascente. Lábios e língua conjugavam-se para o mesmo fim. Num sorvo renascia.”

Caminha com as mãos atrás das costas. O boné demasiado pequeno para a sua cabeça, ligeiramente levantado e inclinado para a frente, quase não lhe encobre os olhos do sol. As costas denotam uma curvatura que os anos lhe foram imprimindo. De vez em quando dores articulares levam-no ao desespero. Contorce-se como em menino quando o magoava o crescimento. Lembra-se desses momentos em que se arrastava pelas ruas de terra batida a quererem afunilar numa perspectiva asfixiante.
Sempre que o cansaço chega lamenta-se dos poucos bancos do jardim. Senta-se a custo na relva à beira do riacho. Recorda quando era um construtor de fontes. Recolhia pedras que a água do rio alisara e acomodava-as de forma a poder ajoelhar-se e beber da nascente. Lábios e língua conjugavam-se para o mesmo fim. Num sorvo renascia.
Nesse tempo a terra gerava frutos sem dor. Sentia-lhe os batimentos como passos ciclópicos unidos à sonoridade das campainhas das vacas. Uma sinfonia pastoral ditava a manhã. Versejava como se abrisse pequenos canais onde libertar a dor. Pelos dedos esguios passavam o arado, o jugo dos bois, as rédeas da égua. A terra sempre a mover-se e a dar lugar aos dias e às noites. A luz minguava desnutrida não fosse a lua metálica e fria na boca. A jarra branca com ramagens verdes e lilás era o aceno do pai. Nessa hora descia à adega para logo retornar com um pequeno mar vermelho a embater no molhe de cerâmica.
Deu voltas à vida na errância dos carreiros sem fronteira. Jamais temeu a aragem fria. O sangue a saltar-lhe na fronte acalentava a intranquilidade do sonho. Desconsertou gestos radicados em movimentos lisos. O mundo era uma longa e incessante estrada. Pelas mãos passavam-lhe agora catedrais de vento e betão. No seu âmago clareava a legítima paz dos justos. Uma parte de si ficara na criança de pele branca. Seria ela a dizer-lhe por onde ir. Haveria de ser assim até outra criança nascer. Nesse dia descascou pêssegos e repartiu talhadas de melão. A casa estava cheia. Também desse aroma sumarento.
Os anos já iam longe e foram-se tornando mais antigos. Não esqueceu as cantilenas e pequenos poemas que dizia quando o invadia a infância. Dentro dele havia um jardim e outro ao redor da casa. Era criador de rosas e de alegria. Enternecido, pensava em tudo quanto sonhara e vira. Muito alcançou. Se cada coisa tem o seu tempo, este era o de segurar mãos pequeninas. Assim se desprendiam fragrâncias de três corações enlaçados. Por vezes adivinhavam-se-lhe apressados relâmpagos a raiar a melancolia. Um certo esvaziamento de quem tanto viveu.
O corpo pede-lhe descanso. Demora-se na berma do riacho. Não há barcos para a outra margem. Nem precisos são. Toca nas cicatrizes com sabor a vitória. Como se vencesse distâncias. Seria fácil dissolver-se numa bruma alada. Não entende nada da morte. Apenas sabe que não deseja morrer. Vai chegando cada vez menos ar e água ao jardim que tem dentro. A gravidade a atraí-lo um pouco mais para o seu centro. Eis um homem carregado de vida que a terra acaba de chamar. Deixou-se ir, lentamente, as mãos na mão daquela que um dia foi criança de pele branca.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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