A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

Há mais de dois mil anos a terra ali era líquida. Como no princípio dos tempos. Aprisionada sob o duro manto vai balançando entre o calor ardente e os fluxos de lava que, em passos lentos, são a sua respiração. Não articula qualquer palavra. Os sons que emite lembram rugidos de animais acossados ou vozes antigas. Desconhece a aragem branda das tardes oceânicas. Do clamor do vento nada sabe. Por vezes sonha com a transparência da água como se fosse um lugar tocado. Num gesto extremo ousa inventar árvores e escutar o suor pastoso da resina. Mas apenas a noite lhe reescreve os dias.

Torna-se mulher madura e inflamada por entre a corrente de fogo. Cruza as mãos sobre o peito e uma voz secreta esculpe sons na obscuridade. Um coro melancólico aloja-se na câmara magmática – há quem diga que tudo isto é semelhante ao vazio. Esta é a casa que existe dentro de nós. Como podemos sair dela?1

Percebe que o tempo não se detém e decide romper a solidez do manto. Em vão. A rocha traquítica é demasiado dura para mãos de mulher. Une esforços à lava basáltica e, pela frágil rocha lateral, irrompe até à luz. Depreende enfim ser um vulcão. Uma forte torrente a descer da cratera, a varrer a montanha até se encontrar com o mar.

Temos que seguir por um caminho de terra vermelha ladeado de hortênsias – novelões de flores violáceas. A devoção faz de nós jardineiros de paz e serenidade. Em movimentos frágeis sacudimos a humidade. O negrume do céu é prenúncio de chuva e os pés colam-se numa lama ruborizada. Questionamo-nos sobre o que iremos encontrar. Sabemos tratar-se de um algar aberto sobre um antigo vulcão. O odor a enxofre parece chegar de longe. A tranquilidade das hortênsias é descurada e, por momentos, somos tocados pela inquietude. Achamo-nos já no interior do vulcão.

Em segundos tudo se transmuta. Resgatamos a devoção perante a espantosa cratera que se abre ao exterior. Uma quase floresta de variadas espécies vegetais exibe-se para nós. Tudo é claridade. Do verde vão caindo gotículas de água com o brilho de pequenos cristais. Uma abóbada cintilante com céu ao fundo é edificada. Pensamos em Deus.

Vamos descendo por entre paredes revestidas a estalactites de sílica branca ou veios avermelhados de óxidos de ferro. Lavas negras formam lâminas esmaltadas. Há uma frescura quase impossível. Prosseguimos durante noventa metros até ao assombro da lagoa. A chuva que entra pela cratera, as gotas que pingam do tecto e as pequenas nascentes imersas entregam-lhe a limpidez de uma cor sem nome. Ficamos estáticos, o olhar cativo do fundo. Custa levantar um pé e depois outro. Somos parte daquela rocha. No olhar temos louro, urze e azevinho. Muita água. Nos braços musgo. Fetos nos dedos. Pensamos no Universo.

Algumas sombras projectam a figura de uma mulher com cabelos de lava. Surge do nada para logo se ocultar. Apenas eu a vejo. Tem a idade do tempo. As mãos tristes de abandono. Recolhe-se a cada gesto meu. Tento dizer-lhe que ali nada é vazio. Que a casa dela é também a minha casa e que jamais poderemos sair dela. Não me escuta. Aprendeu a respirar. É hábil a encaminhar o sangue ao coração. Sei bem que ali retorna e se ajoelha em oferenda. Aguarda o sinal do vento e ascende agarrada ao verde. Pingos de lava incrustam-lhe o corpo que se alonga até ao mar. Inclino-me perante a sua essência. Beijo-lhe as mãos de renda e fogo. Assim fico, em face de Deus e do Universo.

1Fernando Guimarães, Os caminhos Habitados

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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