A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“O mundo dos adultos ainda não tinha sido inventado. Nada sabíamos de intrigas nem de invejas. Havia em nós a pureza clara e o desejo de viver o dia. “

Éramos sete. O primo mais velho já não se misturava muito connosco. O mais novo era demasiado novo para nos acompanhar. Restávamos cinco raparigas, com diferença de idade pouco significativa, mas que em certos momentos podia fazer toda a diferença. O tempo guardou uma ou outra fotografia como prova de termos existido, ou de numa película alguém nos apontar e dizer – olha tu de cabelo tão curto, repara como não mudou muito a escadaria que desce até à praia – Os cactos floridos ainda lá estão e o largo da pequena igreja continua a ser um local privilegiado para as pessoas se encontrarem.
A casa ficava no centro. Por baixo existia uma loja de aluguer de bicicletas a cujo dono os tios arrendavam o primeiro andar. A sesta era obrigatória, mas eu e a prima mais velha, depois dos mais novos adormecerem, esgueirávamo-nos para ir andar de bicicleta. O dono não nos cobrava nada e os passeios pedalados tinham a cor com que pintávamos o vento. Em frente à casa ficava o café mais frequentado, amplo e arejado sempre de portas escancaradas e com vista traseira para o mar. Nesse Verão que mais lembro, uma enorme jukebox na esplanada sugava moedas o dia inteiro. Os Beatles cantavam enérgica e infatigavelmente:
“Ob-la-di, ob-la-da
Life goes on, brah
La, la, how the life goes on”
Foi a minha iniciação a esta banda que viria a reencontrar anos mais tarde, procurando tudo o que sobre ela estivesse ao meu alcance.
As manhãs eram disciplinadas no que tocava à ida à padaria comprar pão fresco para o pequeno-almoço. Todos desejávamos que chegasse o nosso dia. O percurso passava à beira da praia e cada dupla, porque éramos sempre duas, ansiava ver a cor da bandeira. Se verde a alegria saltitava impaciente para levar a notícia até à mesa da cozinha.
A barraca da praia era pequena para tanta gente, mas ninguém se importava, pois, ainda que a neblina húmida da manhã pingasse sobre nós, era no areal que tudo acontecia. Primeiro erámos literalmente barrados com o creme nívea que vinha naquelas belíssimas latas azuis com letras brancas. Apesar do esforço em nos protegerem do sol as queimaduras eram inevitáveis às quais se seguiam bolhas de água que acabavam por rebentar. Quais serpentes íamos mudando de pele ao longo do mês que durava a praia. Conhecíamos os banheiros pelo nome, mas a todos respeitosamente chamávamos de senhor banheiro. Eram eles que distribuíam os bancos de madeira e uma ou outra cadeira também de madeira de acordo com cada barraca. Eram bonitas aquelas filas de tecido às riscas com as tias a fazerem renda e onde só parávamos para mudar de fato de banho.
A praia tinha muitas crianças e facilmente se estabeleciam contactos e se criavam amizades. Comíamos pevides salgadas e jogávamos ao prego. Faziam-se grandes construções na areia que por vezes resistiam até ao dia seguinte. O primo mais velho era alto e nadava bem. Chamava por nós para furarmos as ondas. Lá íamos perdendo o pé e aprendendo a arte de não naufragar. Numa determinada hora a maré permitia que se passasse uma espécie de gruta no rochedo e se atingisse a outra praia. Mas havia algo de mágico que não entendíamos – era essencial contar as ondas e apenas à sétima o mar nos abria passagem.
A hora do lanche que nunca mais chegava. Íamo-nos aproximando da zona das barracas, água na boca, aguardando o pão com doce de cereja que a tia tão bem confeccionava. Era o momento de relaxar e de saborear. O sol a apertar a pele salgada.
Não havia televisão e fora das horas de praia inventavam-se jogos, cantava-se, jogava-se às cartas e liam-se todos os livros do tio patinhas. Ninguém se zangava com ninguém. O mundo dos adultos ainda não tinha sido inventado. Nada sabíamos de intrigas nem de invejas. Havia em nós a pureza clara e o desejo de viver o dia.
Já regressei a essa praia vezes sem conta. A casa foi modificada. É agora uma casa moderna, seja lá isso o que for. Já não se alugam bicicletas e no seu lugar existe uma loja de recordações. Fico sempre parada um bom bocado. E penso que as recordações não se vendem, que vivem todas em mim. O café ainda lá está, mas a jukebox desapareceu há muito. Dos Beatles já quase não se ouve falar e bem gostaria de escutar, de vez em quando, uma ou outra música a passar na rádio. As ruas estão sempre cheias de gente e há lojas que vendem gaufres e crepes com os mais diversos sabores. As pevides salgadas foram substituídas por bolas de berlim.
Desço lentamente a escadaria que dá acesso à praia e sento-me no muro onde uma vez me fizeram uma fotografia. Tenho as primas ao meu lado e todas sorrimos. Esqueci o ano e o mês, mas isso é de somenos importância. Olho os cactos floridos e a brancura do muro. Se fechar os olhos consigo sentir a mesma paz. E revejo-me eternamente de fato-de-banho aos folhos vermelho, o olhar pousado no mar e o pão com doce de cereja esquecido na mão.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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