A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Pequenas visões por dentro vão questionando alguns silêncios. Estamos na semana santa e ninguém sabe de que lado pode chegar a morte. “

Podemos chegar cansados e poeirentos da caminhada. Somos peregrinos na demanda do Belo. Os pés queimam da jornada e ansiamos alcançar o curso de água que nos mate a sede. Como se a sede pudesse ser morta. Existe uma espécie de água que nos sacia por breves instantes. É, seguramente, essa que buscamos. Percorremos quilómetros para alcançarmos aquele momento de êxtase. Talvez o coração possa implodir e esse abalo seja apenas por nós sentido. É presumível que o rosto ruboresça nessa luta e nada transpareça da luz que nos tomou.
O sussurro da floresta e o tapete de folhas de carvalho e musgo acompanham-nos. Avança o tempo saltitante. Pequenas orquídeas selvagens adornam a berma. São brancas como o rosto a que seguimos a peugada. O céu límpido torna as árvores mais intensas. Pintam o céu mais azul. É imprescindível ser-se cuidadoso à medida que a paisagem alastra. Tudo é sempre desconhecido e misterioso.
Por entre paragens e repousos vai-se preenchendo o olhar de coisas raras. Nesse final de tarde junto ao mar a areia tinha a cor dourada do melaço. Uma finíssima linha de luz dividia os mundos – a água a terra e o ar – mas ninguém dava por isso. Só aqueles de olhar lavado iam acumulando pedaços de um mosaico que haveriam de completar. Um homem dormia ao lado da escultura de um Cristo crucificado que acabara de criar no areal.
Pequenas visões por dentro vão questionando alguns silêncios. Estamos na semana santa e ninguém sabe de que lado pode chegar a morte. Um tumulto bate-nos no rosto como um vento frio. Subimos ao morro e percebemos a fragilidade da vida. Basta um pé em falso, um ligeiro desequilíbrio e a noite pode ser tão suave como eterna. Tivéssemos asas e flutuaríamos sobre as casas. Acharíamos em nós a agilidade provável para pequenas incursões sobre a planura do oceano.
Quando, finalmente, somos apenas nós e o mosteiro tudo se abate. A secura do caminho transforma-se num formigueiro que percorre o corpo. O tempo é tépido, mas ligeiros arrepios tomam conta de nós. Como se a quietude que mais tarde nos invadirá fosse, nesse instante, uma impossibilidade. Os degraus gastos suportam bem o nosso peso. Imaginamos ao que vamos e numa estranha leveza abrem-se todas as portas interiores. Por instantes perguntamos quem somos e ao que viemos.
Entramos pelo claustro. Uma atmosfera de paz confunde-nos entre a pedra lisa e o silêncio que a água tem. Molhamos as mãos e deixamos que caiam as fadigas. Demoramo-nos como se quiséssemos ali a nossa casa ou uma cisterna onde reflectir a luz. Viramos o rosto ao sol e agradecemos de mãos abertas. O peito arqueia pausadamente.
Ingressamos no templo pela nave lateral e o despojamento e a modéstia da decoração fazem de nós seres mais humildes. Rendidos às colunas que se alongam ao céu vamos colando mais fragmentos no mosaico final. O Belo vai-se erigindo em nós e o transepto aproxima-nos dos túmulos de Inês e Pedro. Soletramos os seus nomes.
É a aparição. Retiramos os anjos que ajeitam os panejamentos e somos nós que confortamos os amantes e sussurramos as poucas coisas que sabemos sobre o amor. A luz incide como um meridiano sobre a pedra leitosa dos seus rostos. Com ela havemos de lavar o corpo. Uma mandala quer transformar a vida num ciclo infindável. Adormeceríamos ali até ao juízo final só para saber do poder que o abraço tem.
A propagação desarrumada do amor transita hoje por toda a cidade. Ah, o dom da água! Essa fugacidade tocada. Os dedos estrelas velozes no incêndio dos mundos. Os corações selados. Os nomes em todas as ruas. Vamos fechando a gruta onde guardamos a sombra. Se alguém abrir a porta há-de dizer – que não se apague!

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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