“E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou” (Gn 4:8)
Um infinito peso vem tombando sobre cada um de nós. São milénios de um tempo onde o ruído se tem abatido sobre a realidade. Uma breve torção e logo ascendem indecifráveis catástrofes. Golpes sugam o vestígio da luz que o dia descuida. Num aparente silêncio adormecemos dentro de quatro paredes. O nosso destino é um sorvedouro de cansaço. Abate-se o sonho sob pés pesados de insónia ainda que ao longe se vislumbre uma clareira. Talvez na casa exista uma clarabóia e se nos esforçarmos avistemos o mar. Nas fachadas assentam tumultos e a inquietação enrola-se nos nossos lençóis.
Não sabemos que responder ao grito que se eleva e nos afunda como a morte. De olhos vendados vomitamos palavras inábeis. Olhamos as mãos e não entendemos para que servem. Regressamos ao berço e ao receio do escuro. Queremos balbuciar a palavra mãe, mas ainda não aprendemos a falar. Um vazio arde na garganta como um abismo. Nervuras esverdeadas vigiam o toque da pele. São bandeiras de esperança. Acreditamos na árvore onde nasce o poema. Reatamos as cordas vocais. O poema há-de ser uma arma.
Mas os destinos estão suspensos e uma ventania escancara as portadas. O ar entra em pequenas ondas. Brilha como a poalha exposta a radiações. Há crianças por dentro das ruínas e as ruas são valas que descobrem os corpos. A estranheza é um delírio. Não te mexas – deixa que as paredes se desmoronem longe de ti. Não vês nessa sombra veloz a tontura sobre jardins desertos? Que foi feito da bicicleta vermelha? E o urso de peluche cor-de-rosa mais os patins e o skate e a bola de basquetebol? Afastam-se os lugares de outrora e a terra atrasa a translação.
Homens devorados por sirenes são corpos errantes, calcinados, que em segredo abrem golpes e fendas bravas. Recusam extinguir a despedida na aridez de um olhar. Ainda crepita o lume nos sinais de nada e nas luzes sem sentido. Erguem-se estonteados e nascem-lhes mil corações. As armas são pés enraizados na terra. Quedam-se mudos como as árvores. Os séculos suceder-se-ão como aragem quente a lembrar o café da manhã. Medem a distância que os separa das suas mulheres e por elas não se rendem.
É Primavera e crianças nascem em subterrâneos. Urge repor oxigénio na corrente sanguínea, permitir que se respire. Abrir corredores de luz. Embrulhar aos dias mais amor. Encher estradas com cerejeiras. Que a flor nasça no seu tempo e nada se atrase. Que ninguém fique para trás. Seria cruel se uma qualquer bomba ousasse desarrumar os frutos frescos ou quebrar vitrais coloridos.
A emoção persiste fechada num frasco mal rolhado e a coragem é o sonho feito homem. Talvez ainda acreditemos na lealdade e na lassidão das palavras. Nos clarões nocturnos. No rumorejar da caligrafia que se passeia por cidades varridas. Também no céu tardio de um mês inteiro. Na incurável fragilidade da memória. Mas, no final, voltamos sempre à mesma questão – que rosto tem e de que lado se levanta o irmão de Abel que é também nosso irmão?
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia