A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Se me aproximo da pequena ponte é só para fazer parar a lentidão das águas que insistem em levar o tempo. Ao lado um imenso comboio de mercadorias marca o ritmo grafitado no metal. Centelhas incendeiam noites de sonhos inusitados, condicionadas em caixotes de cartão, etiquetadas. Deve sempre saber-se a quem pertencem os sonhos. De onde são expedidos, para onde são remetidos. O comboio vai marcando o tempo.
Como absorver a languidez da água que escorre antes da luz. De que tempo falo quando os olhos se cansam e me pesam as pálpebras. As noites, dormentes, no ranger do soalho, nos estalidos do toucador abandonado. Um ligeiro sismo abana o leito, faz tilintar a porcelana num som de fundo que chega da cristaleira. Desperto como se o uivo dos lobos abandonasse o embalo do sono. O canto dos galos tem algo de bizarro ao desafiar a precocidade da manhã. Um murmúrio a celebrar a infância.
Os sonhos têm a morosidade do colo de mãe. As mãos lavadas em fontes de mergulho aplacam a febre e uma palavra sussurrada resiste mil e uma noites. No tranquilo rendilhado das cortinas rebenta a claridade. A doçura do leite quente. O calor do lume. A conjugação da mestria das pessoas sem idade e o declínio da morte. A convicção da infinidade. As pupilas expandidas apropriam-se do tempo todo. Rotações e translações sedimentam a lisura dos pés.
Ponho a mesa para a refeição primordial como se o mundo acabasse de ser criado para seres cegos e surdos. Todos querem um lugar à mesa e gritam e gesticulam desesperadamente. Olhares frouxos gotejam cristais de sal. Alguém deixa tombar a cabeça sobre os braços, como um desmaio antecipado. Retoma os sentidos nos braços do homem, invocador da secreta força de Sansão. Ninguém sabe do relinchar dos cavalos ou da insurreição das suas crinas. Passos céleres calcam a pequena ponte na urgência da outra margem.
O tempo é um dicionário que engulo. Dobro as folhas, rasgo-as, amasso-as. Aguardo o levedar das palavras. Para onde vazou o som da água que antes da sombra exibia a pele nua? Preocupam-me os sonhos empacotados, empilhados numa qualquer carruagem do comboio. Se necessitarem de encher o peito possuirão espaço bastante para dilatar o diafragma? Talvez chova e arrisquem abrir a boca ao céu. Saciarão, assim, a impaciência das memórias que vigiam a luz?
Reescrevo o som das tímidas cordas vocais. Pinto o êxtase dos lírios. Talho no mármore a cadência do piano. As vozes ao longe silenciam a água onde me purgo. Num funambulismo caminho sobre as linhas, por entre as linhas. Sei que a mesa está vazia. Ou serei eu que não me sento nela. Exijo dos sonhos as portas abertas e o azul ao fundo. A terra humedecida e os pés enraizados. O vento é um dístico sem nome nem endereço. Enrola-se nos meus cabelos. Ainda me questiono em que tempo estou e em que mar se terá suicidado o comboio.

Sobre o autor

Maria Afonso

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