A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Nessa inquietação abafas a voz e silencias as feridas. Nas paredes acreditas ler o teu vulto e os cavalos regressam para lamber o açúcar das tuas mãos.”

De que falas quando mostras as mãos rasgadas pela sombra das serpentes? Há lugares onde ninguém morre e a terra se esquarteja. Pequenas lascas de sílex rasgam a garganta. Ninguém sabe de onde surgiram. Provavelmente ali sedimentaram. Uma lâmina de fogo grita o teu nome e quase te esmaga. Queres banir o dia inteiro como errante é o batimento do coração.
Uma vaga mais ao longe é voluta incerta na estranheza do tempo. Perdes-te num fulgor que apela ao toque. Repousam as mãos naquela frescura dos dias naufragados. Aproxima-se a humidade que se repete como um sino. Nessa inquietação abafas a voz e silencias as feridas. Nas paredes acreditas ler o teu vulto e os cavalos regressam para lamber o açúcar das tuas mãos.
É oculto o sangue que teimas em desprezar. A noite continua a ser um lugar habitável. Vê a sombra que cintila no teu olhar. Como uma raposa noctívaga surges sem temor do muro branco. Já não reconheces o som das cigarras e do suor das formigas nada sabes. Contaminas a água do poço. Rodopias e a água é um turbilhão escuro, quase negro.
Os lábios ruborizaram com a febre. Voluptuosos mas inversos às leis da beleza. Rejeitam espelhos e enclausuram-se. Suspeitam de estranhos olhares alucinando repetidamente. Suam em pleno deserto e criam oásis onde arrefecem a fronte. Vergam-se para beber. Uma flor do deserto cinge-os pelos rins. Sem oposição entregam-se. Sempre previram desenterrar flores da areia. Dunas recentes acabam de ser sopradas.
Inadvertidamente olhas a varanda como se libertasses portas e projectasses jardins suspensos. Flores incógnitas adoçam a lua. Essa insanidade de saber ao que sabe a lua dissolve-se na tua língua. Que cegueira admite sondar marés fingidas e areais de cal? Moves-te num acrobático funambulismo que ateia as perguntas e uma secura extrema toma conta das tuas mãos.
Um instante relampejado assoma na lenta percussão de quem sobrevive aos labirintos. O mar abate-se na distância e talha a mão de um deus. É então que ergues colunas por entre o ruído. E danças, fulgurante, a transbordar de perfume. É o princípio do dia e vestes de branco. Aceitas derrotas e vincos no rosto. Olhas para cima e percebes a efemeridade de tudo. E ris.
Desistes de dissecar os paradoxos e agradeces cada instante. É esse o fascínio para onde se caminha como se para a nossa casa. Lembras-te de Horácio e decides colher o dia.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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