A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“A memória sempre a queimar e a balançar sobre os rochedos. Essa imperfeição muda na lentidão do mundo. Só o silêncio morno da tarde desperta a sonolência de um narciso.”

“Um corpo foi encontrado no rio”. Limitamo-nos a ler o título da notícia no jornal. Para nada interessa o resto. O corpo deixou de respirar. A água encheu-lhe os pulmões. Lavou-lhe a pele.
Já fora um corpo milagre onde se escreveram canções. Quase sempre a falarem de perfeição. Dançou num deserto de rochas côncavas com o coração a rasgar a pele, a querer saltar e libertar-se do peito.
Numa manhã mais pura sorriu para dentro como que a agradecer o alento. Jurou ouvir uma voz a sussurrar-lhe – ah, a poesia do teu corpo! Por instantes experimentou a comunicabilidade entre os passos firmes e o voo ambicionado. As palavras eram aves longínquas por descobrir. Errantes num campo à chuva.
Viu-se nua e estática como modelo de algum pintor. Sonhou que Modigliani assaltara uma montra para roubar um vestido azul. Desejou que lhe embrulhasse a pele nesse azul, que enlouquecesse as mãos e lhe moldasse o pescoço. Uma ternura ficará colada à sua dança embriagada nas praças de Paris.
Foi dona do seu próprio ringue. Lutou de mangas arregaçadas e olhos vermelhos. Sobreviver era como fechar a porta ao fim do dia. Uma inspiração a harmonizar o repouso. Ascendia, assim, como chama ou borboleta escura. De manhã esquecia a sua existência lunar.
A memória sempre a queimar e a balançar sobre os rochedos. Essa imperfeição muda na lentidão do mundo. Só o silêncio morno da tarde desperta a sonolência de um narciso. A gravidade atrai as palavras como leves folhas amarelecidas. O vento de Outono uma flauta encantatória. Ela uma cobra dormente.
O céu a tornar-se líquido. Agulhas a revirar o destino. É domingo de manhã e o espírito desfalece macilento. Há quem ainda lhe chame femme fatale mas o desassossego da rua deserta grita-lhe que o mundo ficou para trás. Olha mais uma vez as fotografias irreais e nada sente. A chuva repentina recorda-lhe o beijo. O pânico que sempre a perseguiu.
Numa violenta expiração corre pelo declive da calçada. Cai as vezes que forem precisas. Afunda os dedos nos rasgões da pele. Tudo é líquido – o sangue e a saliva. O choro. É urgente o naufrágio como a sede que a consome. O deserto não é mais o seu habitat. É agora um coiote ferido.
“O corpo não trazia identificação” – Lê-se de relance no jornal. Só as formas expõem os destroços de mulher qual canção a dizer adeus. O corpo que queria ser foz. Degelo a aumentar o caudal. Casco de navio afundado. Uma casa com pele de escamas.
“O corpo foi retirado do rio” – Alguns peixes dourados alisam-lhe a boca. Soltam-se pequenos búzios dos dedos. A água reflete o céu numa profunda luz azul.
Expulsara já as últimas bolhas de ar. Sobre o instante em que a vida passa pela frente nada refere o jornal. O olhar momentâneo de quem atravessa a ponte dissolve-se na inquietude. Só eu me pergunto se alguém saberá quantas vezes aquele corpo foi amado.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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