A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Poetas e narradores num esforço sobre-humano dilaceram-se, abrem cicatrizes neles próprios. Vestem a pele das personagens. Representam os seus papéis.”

Já Tristão matou o dragão e Isolda continua presa no seu castelo. Nem um nem o outro sabe ao certo o que deles a vida fez. O que as lendas sobre eles foram narrando.
Que distância separa uma lenda de um mito e onde começa uma e termina o outro? Tentativas de explicação de fenómenos, para os quais não existem possíveis comprovações científicas são, tantas vezes, as lendas. A verdade e o ilusório coabitam.
Poetas e narradores num esforço sobre-humano dilaceram-se, abrem cicatrizes neles próprios. Vestem a pele das personagens. Representam os seus papéis.
Músicos compõem óperas que levarão ao palco, ignorando que um dia alguém assistirá e há-de conter o choro que lhe morde na garganta. E que voltará as vezes necessárias até que o nó se desate e dos olhos rompam oboés. Encenadores e realizadores tentarão captar a nostálgica magia que se repetirá enquanto a memória resistir.
Já Tristão e Isolda beberam por engano a mágica poção de amor a outros destinada. Já se encontraram junto a fontes de marfim e mataram a sede um do outro. Ignoraram espias e maldizentes. Riram das torres e das masmorras onde se encarceram os amantes proibidos. Correram com o vento e contra o vento. Das lagoas varreram superstições. Dormiram em bosques, esquecidos um no outro. Montaram elefantes brancos e percorreram todas as visões. Demandaram piedosamente a eternidade.
A distância entre os cabelos de Isolda e as mãos de Tristão cristalizam-se num sopro antigo. Às vezes Tristão chega a sentar-se na mesa do Rei Artur. Há certas alturas em que os dois se entendem apenas em língua celta. Alguém conta que os tem observado na busca de pedras preciosas e metais, ou a cultivar as terras férteis da Pérsia. Outros nomeiam-nos construtores de estradas. Fala-se mesmo de certos segredos guardados dentro de duas arcas. Talvez um dia alguém vindo de outras paragens, de um outro tempo, traga a chave prateada envolta num pano branco e ouse rodar a fechadura, levantar as tampas pesadas numa névoa de poalha diga da eternidade.
Ainda que Tristão seja mortalmente ferido por uma lança e mande procurar Isolda para lhe sarar as feridas. Ainda que lhe mintam afirmando que não virá, Isolda chegará guiada por Wagner. Sabe que uma inesperada e pungente tristeza a roubará à vida. Mas a música dir-lhe-á que existe um lugar onde o amor é irreversível.
Nós vamos escutando os rugidos da terra. Tocando o musgo. Seguindo vozes longínquas de lendas por criar. Como se cantássemos o silêncio. Ou soubéssemos apenas do espaço entre as mãos de Tristão e Isolda. E somos a própria lenda. A electricidade a percorrer-nos o corpo num tempo de convulsões e de espasmos. Como se a eternidade fosse a única estação da vida e nada soubéssemos do amor.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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