A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Procurávamos a carne da terra e os animais ocultos nos penhascos. O decalque de deus em nós.

Pensei ser o tempo um potro branco e dócil. Crina desalinhada, trote ameno. Impaciente de carícia a olhar-me de soslaio. A chamar-me pelo nome, sílaba a sílaba, assobiando. Ávido de saber. Perguntas de criança sem resposta. Em que ajudaria se éramos alados e perfeitos de exultação. Desconhecíamos os relógios. O sol era a misteriosa terminação nervosa. Quente e forte sabíamo-lo certo. Tudo era mais tarde. Sem que nos apercebêssemos os anjos vigiavam-nos. Uma transparência de espelhos cirandava entre nós. Entrávamos um no outro como partículas de um corpo partilhado. Cada tarde era um recomeço se nos abandonássemos à brancura. Roubávamos maçãs e fugíamos para a praia. Ele rindo. Eu tagarelando.
Pensei ser o tempo um cavalo branco, ainda branco, crina elegante, de galope apressado. Simulado de carícias. A chamar-me sem me olhar, voz grave e tom austero. Aos poucos foi carregando a imperfeição dos dias. Olhava a sombra como se uma porta se fechasse. Dei-lhe a mão. Quis mostrar-lhe uma rua larga. Prados mais verdes. Sentei-me em alguns muros para o ver passar. Nos meses mais frios desatava os cabelos. Ele sabia do declive do tempo e de certos abismos. Quis mostrar-me como enlouquecer. Eu falava-lhe de infinitos. Do amor em repouso. Do latejar da luz. Um dia deixou de assobiar. Com desfaçatez ainda se riu. Eu silenciava.
Pensei ser o tempo um cavalo veloz, inatingível. Apto a enganar a morte. A chamar-me com aspereza na voz. O sangue turvo na incessante busca da apoteose. Falei-lhe da solidão que há dentro dos poços. Dos trilhos violentos. Respondeu-me com fumo. Insisti na beleza dos laranjais. Na respiração das idades. Fomos seguindo viagem. Os anjos a coagir o silêncio. Só o nosso diafragma contestava o universo. A realidade a trepidar nas suas crinas, a hesitar nos meus cabelos. Algo se expandia ao sinal da água. Mãos abertas como lagoas. O fervor dos corpos sequiosos de clareiras. Procurávamos a carne da terra e os animais ocultos nos penhascos. O decalque de deus em nós.
Durante algum tempo pensei ter sido traída. Até que lhe desvendei o segredo – teme ser domado, treinado. Assustam-no as rédeas. Estremece ao nosso olhar. Esquiva-se às nossas mãos. É periclitante quando contestado.
Sei hoje que será incessantemente branco, sôfrego de riso. Uma alma a abrir janelas. Saliva a recobrar ferimentos. Outra forma de silêncio. O alimento – raiz e ritual. Deterá o sopro da neblina num sobressalto sossegado. Uma luz por dentro em gestos vivos a cintilar.

Sobre o autor

Maria Afonso

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