A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Os oboés intercalam o som com o arranhar das cordas do violino. Como se uma porta se abrisse para o calor do espírito. Ilumina-se a dança. A manhã principia na água. Como a vida. Outros instrumentos se vêm juntar. Uma espécie de enigma acolhe as vozes mudas. Estende-lhes as mãos. Venda-lhe os olhos. Um plâncton ancestral alimenta a floresta. Oferece-lhe o verde. Respira-se folgadamente nesse poço iniciático onde nos queremos perder.
Os homens vestem-se de negro. Homenageiam o amor. De nada querem saber para lá do barco que partiu rumo a Ítaca. Magistralmente belos, nos seus rostos audazes, anseiam ser deuses. Deixam que as abelhas lhes aferroem os dedos. Impedidos de contar moedas, inventam jangadas de luz. Atam a sombra até a música inebriar as montanhas e fazer crescer os vulcões. É lá que moram as memórias. Os sons aveludados do piano que retiraram do mar.
Mulheres tecem odisseias intermináveis. Nas suas mãos ocultam o conhecimento. Acoitam os números e, dos pontos cardeais, urdem lençóis onde se deitam. Brancos do vento em que os purgam. São poderosas mortais quando alongam os braços. Abrem o mar e a terra retorna ao infinito. Do rochedo avistam templos caiados de onde deusas excitam a lua no escurecer dos búzios. É a hora do pranto. E fecham a porta das casas que lhes moram por dentro.
A vida ouve-se ao longe. Vai-se acercando em passos lentos. Em gestos lânguidos. Um bailado. Flores raras vão-se despojando de aromas bravios. Homens e mulheres embebedam-se debaixo de árvores cristalizadas no tempo. A beleza é um desnorte. Seduz no desespero das arestas. Saltam-se muros. Rasgam-se as mãos nas vedações. A demanda é uma praia desprezada e o clamor de uma cítara. Uma mulher com dedos suflados no casco do navio.
Regressam as memórias. Dói mais tudo o que ficou por viver. Por sentir. O naufrágio sem epílogo. A urgência de arder no mar. A leveza do toque na pele. Os mapas por concluir. Os segredos por escalar. O calor da boca. A rouquidão das grutas inexploradas. A mansidão da água. Todas as palavras contraídas. Nós cegos. A tentação do silêncio no jardim das pedras. A transmutação da água. Os nomes que não dissemos. Os aplausos às auroras. O sal aspergido nas marés.
A humidade das águas exala enxofre. Banhamo-nos. Arrastamos os pés e cortamos a água lentamente. Somos a quilha de uma casca de noz. Sem velas nem leme. O silêncio das sereias a enlouquecer-nos. Feridos os mastros do navio, sem cordas onde nos prender. E vamos com a maré. Deixamos cair as mãos na água sem força para remar. Olhamos as margens na voracidade dos deltas que virão.
Um istmo sufocado é o lugar por onde se vai. A veia cava arrebatada numa sístole de rubor sanguíneo abre veias e artérias secundárias. A viagem não finda nos arquipélagos. Os oboés têm a voz de uma mãe. Chamam por nós. Dão-nos a mão. Os violinos gemem arqueados ao leme.
Homens e mulheres conhecem a paz do desaguar.

Sobre o autor

Maria Afonso

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