A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

«A onda já alastrou pela cidade baixa e eu desejo ir com a maré. Perder-me nas águas. Saber do canto das sereias e do mastro dos navios»

Há dias em que apenas a parte baixa da cidade permanece, como se uma onda gigante chegasse da zona mais alta e ficasse suspensa. Pensativa, sem saber se deve descarregar toda a força que só a água sabe antecipar. Passo de soslaio pela janela e essa massa cinzenta prende a minha visão. Cola-se húmida e pastosa. O primeiro impulso é passar os dedos pelo rosto, certificar-me se será algo de misterioso como a maresia quando se agarra à pele.

Vou até ao espelho. Sempre se disse que o espelho mostra quem somos. Daí a admiração que nos assalta ao darmos conta de nós por quem os anos foram passando e a lei da gravidade foi, aos poucos, curvando. Olho e esforço-me por interiorizar a complexidade do que vejo. Sei ser uma experiência só minha. Um mergulho em apneia no mais fundo de mim. A transparência de algumas gotículas na minha face faz-me sorrir. Toco-lhes e derramam-se como chuva numa vidraça. Levo os dedos aos lábios. Um breve sabor a sal transporta-me para a realidade.

Tenho cerca de quatro anos e estou de frente para o mar. O meu pai e a minha mãe estão comigo. Somos apenas os três na praia. O mundo resumido a esse instante. Sei que é Inverno porque nas ruas do Porto me compraram uma saia kilt. Sei também ser fim de tarde porque as gaivotas estão felizes, ou assim penso eu. A minha mãe vai ficando para trás, receosa, perante tão inusitada experiência. Também para ela é a primeira vez. É a nossa primeira vez. A minha mão firme na do meu pai e os passos cada vez mais decididos. Nós de frente para o mar.

Que infinidade é essa que se eleva e se rende aos nossos pés? Que sorte de rugido é esse que se funde com a água e se aquieta por segundos? Uma lentidão varre o meu olhar. Contemplo, ignorando o que seja contemplar. Num abrasamento inexplicável sei que estabeleço a conexão para a vida. Nada mais há ao meu redor. Agora sou só eu e o mar. Passo e amo e ardo (1)

Dias há em que aproximo um búzio do ouvido. Enrolo o corpo num lençol branco ou numa vela de navio. O meu cabelo mantém o corte que o meu pai me fez. Fecho os olhos e deito-me sobre as algas brilhantes. Levo de novo os dedos aos lábios e o toque do sal quase queima. Ensaio sons e danças com pedras e ramos secos. Retorno ao início do mundo e àquela longínqua canção – “Something she thought eternal, Something like childhood” (2)

A onda já alastrou pela cidade baixa e eu desejo ir com a maré. Perder-me nas águas. Saber do canto das sereias e do mastro dos navios. Tricotar o sal e o sol. Perguntar a Ulisses se ainda recorda Ítaca. Na liquidez do espelho invento um naufrágio. Declino a dor de não reconhecer a minha imagem. Múltiplas de mim dançam até anoitecer. É o momento em que o mar recolhe ao búzio.

(1) Eugénio de Andrade;
(2) My Brightest Diamond

Sobre o autor

Maria Afonso

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