Há ainda vestígios do vento que durante o dia de ontem calcorreou a cidade. É cedo e, daqui de onde eu vivo, observo o céu que conserva uma capa escura atrás das casas. A luz que vem de nascente insiste em espelhar-se nas vidraças dos prédios altos. Não sendo fenómeno original, sinto-o hoje como uma espécie de sinal. Claro que cada um vê o que quer, onde quer que seja, e eu decidi que veria um sinal.
Mantenho-me presa à janela por longos minutos. Não fora esta pandemia e subiria à cidade para sorver o ar frio deste estranho Janeiro. Pisar a calçada e sentir-me privilegiada. Saber que outra mulher, noutros tempos, terá percorrido as mesmas ruas ladeadas de casas de granito. Imaginar como seria se a encontrasse por acaso. Que lhe responderia se me perguntasse que dia é hoje.
Retorno à mesa onde escrevo esta crónica. Através da janela à minha frente continuo a observar a cidade. O silêncio que a envolve é bem o reflexo do medo desta guerra invisível. O receio do outro. Só o outro nos pode injectar o veneno. É por isso que ficamos em casa, porque o antídoto tarda. Dou por mim a pensar como urge afrontar outras batalhas. Sem armas. Sem vacinas. Sem medo. Basta sair de casa com uma caneta na mão. Colocar uma cruz no quadrado em frente daquele ou daquela a quem vamos confiar o nosso poder. Soubéssemos todos como é verdadeiramente nosso o poder e ninguém ficaria em casa.
Aquela mulher insiste em rondar o início deste meu dia. Traz com ela as bandeiras vermelhas e verdes para eu bordar. E, clandestinamente, junto-me a ela e dou de mim o meu melhor. Enquanto bordamos vai-me falando da sua vontade de justiça e da importância da militância naquilo em que acreditamos. Diz que os conflitos bélicos podem ter resolução através do diálogo. Conta-me como defende os direitos das mulheres. Diz não desistir enquanto não vir praticado o sufrágio feminino. Pelos direitos e deveres iguais entre homens e mulheres jamais vai deixar de lutar. Que é premente a instrução das crianças.
Levanto a cabeça e olho novamente a cidade. A capa escura vai-se estendendo e ocupando mais espaço. Gostava de ter poderes que me permitissem abrir brechas de luz. Ter voz forte para lembrar que nesta cidade nasceu, num Abril distante, uma mulher de liberdade. Que somos herdeiros desse espírito inconformado. Que temos o dever de não deixar cair por terra o seu livre-pensamento, as causas porque se bateu. Que o pioneirismo inconformado tem que vingar. Nem que seja necessário subverter a lei a nosso favor. Saber de gramática para podermos requerer. Alegar que o plural masculino inclui o masculino e o feminino. Que chefes de família não voltarão a ser exclusivamente os homens.
Sei de pessoas de espírito aberto que não se acomodam – O Jorge que me persuadiu a escrever sobre esta mulher e me disse com humildade que ela estava necessitada das minhas palavras. Que era digna de ser relembrada. O António que se vestiu a rigor no dia em que uma escola da terra que a viu nascer a tornou patrona. A Paula Pais que criou a peça O Livre Pensamento e a fez estrear aqui, na Guarda, a sua cidade. A toponímia de ruas e pracetas de algumas localidades vão lembrando a memória desta mulher. Em Loures, um hospital com o seu nome está neste momento em quase colapso. São os efeitos desta guerra a fazerem-se sentir.
Hoje, se a encontrasse, gostaria de lhe confirmar que “as beiroas são criaturas inteligentes e com uma intuição instintiva para a liberdade”, como ela declarou ao jornal O Século a 5 de Abril de 1911. Poucos dias depois tornar-se-ia a primeira mulher a votar em Portugal e em toda a Europa Central e do Sul.
Lígia foi o nome que usou como membro da loja maçónica Humanidade. Em latim seria a eleita, a escolhida. Na mitologia grega, a voz clara ou quase um assobio. É com essa voz clara da Carolina Beatriz Ângelo e esse assobio em forma de apelo que hoje irei votar.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia