“If I was young, I’d flee this town
I’d bury my dreams underground”1
Se fosse. Arriscaria alguns saltos e espargatas arrojadas. Haveria de ser valente. Aprenderia a tocar trompete. Coreografaria a vida com balões coloridos. Rodopiaria no chão por entre confettis e uma rosa-dos-ventos. Caminharia na areia molhada e arrastaria as latas vazias de sonhos. De frente para o mar sopraria sons revigorados como se fosse festa e foguetes estalassem. À minha ordem cada vaga esvaziaria o seu poder sobre as rochas. Entraria na água de vestido novo, como se a ancestralidade ali me aguardasse.
Assim, numa manhã melancólica, sentada no sofá, decidi rebentar todos os balões.
“All we ever wanted was everything”2
A nostalgia dos tambores traz à luz os tempos de glória. Éramos imortais e quase anjos. Arriscávamos o trapézio e o funambulismo e dávamos as mãos para chegarmos mais alto. Cortávamos o vento e ríamos dos cabelos emaranhados. Da chuva lambíamos as gotas que um dia seriam lagoas. Calcávamos pedaços de granito quente enquanto aumentávamos o volume nos auscultadores. Escrevíamos cartas em papiros coloridos. Liamos poesia grega junto a templos idealizados. Adormecíamos com a noite. Na noite. Tudo o que sempre quisemos foi tudo. Jamais sentimos frio.
“Nothing’s gonna hurt you baby”3
Dias escuros e pastosos. Dias plurais. Iguais. Uma gramática obsoleta a amanhecer e a morrer com os dias. Horas envoltas numa monotonia de sinónimos. Palavras esdrúxulas foram tomando conta de nós. Sem que nos apercebêssemos inventámos muralhas de medo. Contra o medo. Um entorpecimento sanguíneo a abafar as palavras. Disseram-nos que tudo iria correr bem. Desconfiámos.
Num dia singular decidimos rasgar gramáticas e preceitos. Criámos evasões imaginárias e corremos até ao fim do fôlego. Numa sublime escalada tornámos a nós. Roubámos risos ao tempo e imitámos estrelas de cinema. Beijámo-nos, indecorosos, no chão do quarto. Sacudimos a penumbra das cortinas e parámos o coração um do outro. Sussurraste – “enquanto estiveres comigo, vais estar sempre bem”.
“Estrada”4
Caminhos desconhecidos por onde nos podemos perder. Ainda que saibamos a direcção. A estrada circunda pequenos montes e vai deixando adivinhar uma cidadela lá no alto. O que nos aguarda será sempre surpreendente. O mundo em 360 graus. E a fragilidade do tempo entre as pedras das casas abandonadas. No vale cavado entendemos a firmeza do rio em não morrer. Há o frio gélido do interior. Junto ao castelo um sol infantil pede para nos sentarmos. Para aguardarmos que a lua desça um pouco mais sobre nós. O céu é de um azul incomum e arriscamos permanecer só para ordenar às estrelas que caiam. Uma chuva de estrelas é tudo o que um viajante deseja. Assim não o sufoque a lonjura. Mas um viajante nunca se perde.
Da sala ampla, cheia de luz onde tocava piano lembra os reflexos das árvores no negro espelhado. Um lago. Não sabe se regressa. A estrada é uma catedral. Colunas de árvores ladeiam a nave principal e prolongam-se até à limpidez de uma cúpula. Jardins de sons rodopiam. Abandona-se e consente que a estrada o encaminhe.
Hoje fui caminhar. Gosto de sentir os pés sobre a terra. A sua vibração. Abandonar-me à oscilação do corpo. Respirar. Caminhar é encontrar-me comigo mesma. Ordenar ideias. Achei que hoje seria o dia ideal para repensar 2020 e a estranha forma de vida que nos impôs. Raramente uso auscultadores porque desejo muito escutar os sons que me rodeiam. Escutar o pensamento. Esta vez foi excepção. Fui ouvindo músicas ao acaso. Talvez me tenham ajudado a perceber como aqui cheguei. Ou nem por isso.
1 Beirut – Elephant Gun
2 Bauhaus – All We Ever Wanted Was Everything
3 Cigarettes After Sex – Nothing’s Gonna Hurt You Baby
4 Rui Massena – Estrada