A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

«Resistir é a pauta de uma antiga canção que guardam no sangue. O fogo do outono é que as há-de guiar»

Por mais frágeis que sejam as lágrimas a noite chegará com as mãos frias. Dizem que procura a beleza em quartos de horas longas. É aí que as mulheres encostam o rosto a almofadas gastas e descoradas. O sono, pesado, como as pernas esgotadas dos caminhos indefinidos. Em sobressalto, dormem despidas de fantasias. De vez em quando uma palavra desperta-as como se alfinetes lhes perfurassem a pele – nuvem ou claridade. Azul.

Do azul conhecem aquele pó com que encobrem as pálpebras. Como se precisassem de uma cor assim a tingir-lhes a pele. Há cores que lhes moram dentro. Às vezes escorrem-lhes dos olhos pequenas paletas e pintores sem lugar idealizam ali o seu atelier. Homens levam nos braços vestidos roubados em lojas nocturnas. Dançam nas ruas estreitas como se o seu mundo se encaixasse no dessas mulheres. Nada sabem da existência ou da melancolia. Dos dias a atravessar a luz depois dos abraços jamais ouviram falar.

Amanhece e é preciso que elas sejam fortes. Resistir é a pauta de uma antiga canção que guardam no sangue. O fogo do outono é que as há-de guiar. Vestem-se de uma fé inadiável, mas ainda ontem queriam que o mundo parasse. Sabem de cor os primeiros passos e as horas a que a água desponta. Os veios errantes com que se debatem são botes a evitar os rápidos. Alcançarão o topo de uma montanha para se sentirem guardiãs de um tempo que já o foi.

Ver mais longe é uma gravura, um esboço do limiar de um corpo. A textura densa de cada movimento. O alento dos sopros de coração. Antes que seja meio-dia ainda terão que negociar a orientação da sua sombra – Há mulheres entre o sol e a imperceptível agitação da firmeza – Vacilarão entre o desejo de deixar morrer a sombra que as quer vencer e a exuberância do seu corpo erguido. E amam a viagem como se se desprendessem de uma culpa alheia.

Ainda que neve à sua volta ou no rosto de uma criança, sacudirão o cansaço na brancura dos muros. De cada dedo nascerão espadas ou rosas e serão cinco ou dez de cada vez. As pétalas a arder sobre a neve. Os lábios a inflamar a secura da tarde como cardos ou areias fundidas. Uma turquesa em cada olhar desprendido e um mar manso na expectativa do regresso.

Está longe o quarto de almofadas gastas, o sono pesado em sobressalto. Outra noite mais. Abrigam as mãos entre a brancura da cama e o brilho do sonho. Sonharão o que determinarem, e toda a beleza tombará sobre a pele como uma melopeia. Conseguem ver por dentro das palavras, para lá das palavras. E rasgam silêncios ao amanhecer como quem se alimenta de orvalho e lilás. Na humidade das suas línguas escrevem a cada madrugada – queremos que o mundo pare para podermos recomeçar.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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