A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Hoje os diálogos tinham como tema as doenças e os médicos e que quem precisa deles são os velhos, porque os novos não ficam doentes.

Na sala de espera de uma clínica de fisioterapia assiste-se a conversas banais sobre o tempo. Que deveria chover e que a chuva faz falta, que o calorzinho ainda sabe bem, que o inverno é muito longo. Outras vezes há alguém que se destaca, porque sabe tudo e sabe falar de tudo, de tudo tendo a opinião mais correcta e conclusiva, insuflando, assim, ainda mais o seu ego. Dias há em que pouca gente fala sobre o quer que seja, ou porque já todos adivinham que a hora de fazer fila ritmada ao som de canadianas se aproxima, como se de uma peregrinação se tratasse e cada um aguardasse o milagre ou porque, lá no íntimo, a espera do milagre já se converteu em cansaço. Hoje os diálogos tinham como tema as doenças e os médicos e que quem precisa deles são os velhos, porque os novos não ficam doentes. E uma – ai não, os novos ainda estão piores que os velhos! Ao meu lado um senhor de oitenta e muitos anos, reservado mas com um aspecto muito lúcido, assistia calado não resistindo, a certa altura, perguntar à tal – e o que é ser velho para si? E ela – velho é um trapo. E ele – e eu sou o quê? E ela – é um senhor idoso. E, não satisfeita, continua a sua dissertação filosófica – uma coisa é ser velho, outra é chegar a velho. O senhor, serenamente, repete duas vezes a mesma resposta – deixe-se disso, isso é poesia, deixe-se disso, isso é poesia. Fiquei algo surpreendida com a resposta. Aquela resposta fez-me abanar. Entretanto inicia-se a peregrinação e cada um já sabe para onde se dirigir. Um cubículo com uma marquesa, rodeada de cortinas de plástico. Eu também tenho direito. Mas inicio com exercício em bicicleta estática e consigo observar, de soslaio, o senhor de idade deitado numa espécie de cama maior que as marquesas, com uma bola debaixo dos pés que teima em lhe fugir quase de imediato. E assim permanece até que alguém venha e lhe coloque, novamente, a bola no local de onde não deveria ter escapado. E noutros dias tenho ouvido a forma brincalhona com que lidam com ele – então queria ir de sapatos desapertados? Não fazia mal, depois se caísse íamos visitá-lo ao hospital, não era? Ele nunca responde a estas brincadeiras. Porque sente não estar a ser tratado como um idoso, mas como um velho. Porque a idade o tornou sábio e lhe disse que era melhor não responder. E assim vai ouvindo. E calando. Por receio, ou porque já não o levam a sério e ele sabe. Sim, ele sabe. E sabe tanto que sabe o que é a poesia. E quando deve ser dita na sua forma pura. Também sabe quando deve ser enfrentada sempre que dita levianamente. Como eu gosto deste senhor que tem mais anos do que eu e que sabe, no seu íntimo, o que é a poesia. Vou escrever-lhe um poema que lhe entregarei amanhã mesmo. Há poemas que são urgentes.
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(Este texto tem 5 anos, mas poderia ter sido escrito hoje.)

… No dia seguinte entreguei-lhe uma folha de papel com um poema. O senhor, algo incrédulo, olhou para mim. Peguei-lhe na mão e sussurei-lhe que aceitasse, que as suas mãos me traziam a memória do meu pai.

Sobre o autor

Maria Afonso

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