A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“E se um dia não soubermos de nós? Se aos poucos nos formos perdendo e largando fragmentos aqui e ali. Pequenas relíquias de uma vida que nos foi tirando o tapete.”

E se um dia não soubermos de nós? Se aos poucos nos formos perdendo e largando fragmentos aqui e ali. Pequenas relíquias de uma vida que nos foi tirando o tapete. O corpo ao sol sem sentir o calor. Desconhecer a luz. Nada saber dos dias nem dos anos. Um olhar translúcido a erguer barreiras intransponíveis. A incerteza cravada nos rostos antigos.
O desassossego a desmaiar nos bolsos rasgados por onde fogem as mãos. Uma mansidão indolente a incitar a dor no rosto dos outros. Que fazer do tempo senão colher pequenas flores no olhar distante de um amigo?
Fomos ignorando a fúria e do sopro já nada sabemos. À nossa frente só uma parede enevoada persiste. Arregalamos os olhos naquele sufoco que quase nos enlouquece. Porque não vemos qualquer porta e somos inábeis a abrir janelas. Não há farol que nos guie e para nada nos servem os mapas.
A solidão interior fechada em nós. Como se deslembrássemos o que é ser humano. Uma espécie de coma impenetrável. Sem memória. Estranhar a água morna e salgada a escorrer pela face. Nada entender da saudade nem dos abraços. Ir perdendo as palavras que nos mordiam a pele. Desprezar o aroma das rosas. Esquivar-se a todos os poentes. Ignorar que os muros se podem saltar. O pai e a mãe, fendas escuras e profundas impossíveis de clarear.
Pudéssemos ser como Dalí e pintar uma tela em poucas horas. Misturar elementos irreais com imagens familiares. Nem que fosse, tão só, para criar a impressão de realidade. Esquecer o tempo sobre relógios derretidos. Estarmos seguros da permanência dos penhascos. Termos a garantia do mar. Percebermos que são o horizonte que nos aguarda. Ainda que as formigas tragam com elas a decomposição, haverá sempre um sinal de vida. Do que nasce e do que morre.
Como Dalí, aguardaríamos que alguém chegasse do teatro para lhe perguntarmos se em três anos as pessoas esqueceriam aquela imagem. Ninguém poderia esquecê-la, uma vez vista – seria a resposta inevitável.
Saberíamos, então, de nós e dos outros. Do canto dos ramos quando roçam o rio. Acharíamos as mãos dentro dos bolsos. Voltaríamos ao breve sabor das palavras. E retomaríamos o choro compulsivo do reencontro numa garantida persistência da memória.

Sobre o autor

Maria Afonso

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