A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Há sempre uma porta que fecha o mundo lá fora. Podemos regressar de lugares longínquos onde a terra tem outra cor e o ar se respira a diferentes altitudes. Podemos estar a chegar do quintal mais recolhido onde as flores nos conhecem pelos passos. Assim que entramos em casa o gesto de fechar a porta repete-se. E volta a repetir-se no dia seguinte e no outro. Aqui. Em todo o mundo onde haja casas.
Gosto de casas. Daquelas onde nunca entrei. Conheço-as por fora. Sei das pedras e da cal. Das tintas. Das madeiras. Das janelas fechadas. Das janelas abertas. Das escadas até à porta. Dos telhados de duas águas. Às vezes são casas gémeas que se prolongam em banda, como se tivessem herdado a mesma genética. Um fole aberto, sopro cansado de um acordeão. Outras egocêntricas, ermas, a imperar num campo aberto ou no topo de um monte. Solitárias.

Invento-lhes ocupantes e atribuo-lhes risos ou silêncios. Crio-lhes conexões. Momentos de ternura. Algum tempo para a dor. Tento perceber o grito da luz a ferir o soalho. O refúgio nas persianas – pálpebras descaídas. O veludo gasto dos cadeirões sob a poalha da sala. A canção desafinada no banho. A cama onde descansar as fadigas. A cama onde inventar o amor. Às vezes adivinho divisões de paredes nuas e amarelecidas por uma persistente falta de claridade. Noutras vive-lhes um fogo quente impresso num papel de parede que fortalece e faz sorrir.
Mas é nas casas abandonadas pelo tempo – flecha que lhes trespassou a coluna vertebral – que me demoro. Com uma visão monocromática entro-lhes nas veias. Percorro toda a corrente sanguínea até à jugular que alguém lhes laminou. Sustenho-me no coração. Inspiro para ganhar forças. O cheiro de fotografias envelhecidas mistura-se com o couro de sapatos velhos. Teias de aranha tomaram conta das vozes. Não escuto os sons, mas sei dos seus segredos. Abotoam-me a pele que sempre se quer soltar do meu corpo. Trazer de volta a vida às cinzas da casa. Mas acabo por me afastar para a deixar morrer. Entre a taipa e a pedra encontrará o seu túmulo.

Há quem desconheça o que é uma porta de uma casa e leve o mundo inteiro com os seus pesares para o interior. Ou quem nunca tenha experimentado descansar os olhos debaixo de um tecto e suporte as estrelas nos seus ombros. Há quem não queira uma casa. Há quem tenha perdido a sua casa. Há quem não precise de casa e se eternize na floresta. Ou nos montes. E caminhe descalço a vida inteira para saber das vibrações da terra. Para descortinar o oculto dos astros. E há quem percorra as margens dos rios para não se perder quando sentir ser o momento de desaguar.

Há dias, numa das minhas caminhadas, passei em frente de uma das casas que imagino por dentro. Sempre a adivinhei vazia. A pedra que reveste quase todo o jardim é de uma aridez asfixiante. Só um estreito rectângulo verde ladeado de parcas roseiras lhe insuflam alguma vida. Nesse dia o calor afogueava e na casa a maioria das janelas estavam entreabertas. À medida que me aproximava, o som vindo do interior tornava-se mais claro. Uma voz de mulher expelia o fel em cada sílaba. Unicamente a raiva que cuspia e o ódio que a envolvia se faziam ouvir. Acelerei o passo tentando não perceber a formulação das palavras. No meu peito um nó foi tomando a repentina forma de soluços compulsivos. Como se me tivessem retalhado a carne ou a alma. A porta daquela casa não se fechara para o mundo. E eu não sabia que poderiam existir interiores assim. Quando essa casa envelhecer e ninguém a habitar não entrarei dentro dela. Passarei apenas para saber se corre água no pequeno riacho que lhe passa ao lado. Talvez nessa altura tenha chegado o tempo de procurar o leito que leva ao mar.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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