A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Resguardados de um inimigo invisível, em casas como trincheiras, fomos espreitando o mundo. Disseram-nos que seríamos os donos do nosso tempo. Que o acometimento maquinal de cada manhã abrandaria. Um intervalo, entre a cena e a plateia, a consentir-nos perceber se temos sido actores ou espectadores das nossas vidas. Perante o temor e a expectativa fomos aceitando a implacável novidade dos dias. Com tapumes e sacos de areia defendemos a nossa morada. Uma terra de ninguém minada de olhares ameaçadores a ordenarem clausura. Na trincheira em frente, compelidos à sobrevivência poderiam estar os nossos pais. Guerra estranha, essa que levanta muros intocáveis. Se ao menos pudéssemos aproximar-nos, carpir de mansinho as nossas lamentações.

A janela a abrir-se para uma cidade estranhamente solitária. Algumas aves acercam-se para exibirem as suas cores. A quebrar a melancolia dos dias. Perguntam o que temos feito com o tempo. Baixamos os olhos como crianças repreendidas. A sombra antecipa-se quando nos afirmam que amanhã tudo pode ser diferente – não vês ao longe o topo do mundo e a limpidez da água solta nos canais de Veneza? – mas já nada sabemos da palavra normalidade.
A sequência cronológica do filme das nossas vidas foi, inevitavelmente, interrompida por interpolações de episódios anteriores. Em alguns momentos a infância tomou-nos num doce assalto. Concluímos que foi sobrestimado o que não merece ser considerado, o que é efémero e não nos cabe na pele. As cicatrizes tomaram o carácter revigorante de pequenas vitórias já esquecidas. Só a forçosa inquietação foi deixando marcas como se o vento invadisse o âmago de uma pedra.

Um dia as sirenes abrandaram. Uma espécie de sfumato a dilatar a visão, a pôr a nu os efeitos colaterais que todas as guerras vomitam. E um travo amargo a embargar a voz, a impedir-nos declarar vitória. A custo rasgaram-se algumas clareiras. Por breves instantes foi-nos sendo consentido vermo-nos nos olhos dos nossos pais. Só os abraços retardam e o peito ainda queima.

Arriscamos sair da trincheira, pisar a terra de ninguém. A apreensão inicial a tomar conta de nós – saberemos colocar um pé à frente do outro? Reconheceremos o momento de parar para não perdermos o norte? – E vamos prosseguindo, bandeirantes, na demanda de um novo metal precioso.

É hora de reencontrar terras por mapear onde o verde se desfaz em prazer. Por entre os clamores da água adivinha-se a cor da terra que a gerou. Uma mescla de cheiros florais deita-se sobre o feno fresco. Fazem cama em plena luz. Desafiam-nos. Os risos das montanhas são sereias a testar os seus encantos. Sem navios embarcamos por um oceano imaginado. Aportamos em terras de granito escuro. Um azul incomum trespassa as pequenas sombras de nós. Arriscamos subir ao topo onde moram os castelos. Tínhamos esquecido como o calor pode abrasar os corpos. Paramos o coração para podermos inspirar, de uma só vez, 360 graus de infinitude. Afinal sempre quisemos tão pouco! Deitamo-nos no chão para sermos parte da terra. Que o silêncio nos reescreva.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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