A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

A insignificância da humanidade sentada no chão. Circundam-na sete capelas radiantes separadas por pequenos corpos triangulares. Evita olhar para o alto. Mantém-se assim por mais algum tempo. Terá que interiorizar a visão que a levou até àquele lugar. Abrir lentamente os olhos. Elevar as mãos. Devagar, como se suportassem todo o peso de uma pedreira. Mãos hipnóticas. Guindastes. A memória traz-lhe a claraboia que o pai abria. Gestos finos consentiam que a corda deslizasse por entre as mãos. A luz translúcida readquiria o brilho de todas as manhãs. No berço, a humanidade era ainda uma criança.
Um vento de meia Primavera baila de forma circular. Sente-o por entre os dedos abertos – separadores de folhas de livros secretos. Os mistérios sempre a tentaram. Segredar à nascente do rio que sabe onde vai morrer. Que um dia se purgará nas suas águas. Adivinhar-lhe possantes enchentes que haveriam de separar as gentes. Atear o fogo no interior das pedras. Confiar na musicalidade dos montes. Sorver o pó dos caminhos e decifrar a cor do xisto. Vacilar na hora de colher uma flor. Ser o caule da flor. Saber ao que sabe a seiva.
Permanece no chão num entorpecimento incerto. Teme que algumas das sombras que lhe ardem nos dedos ganhem vida em vozes impossíveis. Há palavras encostadas à pele como cicatrizes. Mapas sem orientação que gesticulam para serem seguidos. Deixou, há muito, de recear o uivo dos lobos. Já não a amedrontam ao adormecer. Na hora de acordar admite a imortalidade de certos homens. Sabe-lhes das mãos rasgadas pelo calcário que foram talhando. Numa epopeia equilibraram colunas. Ergueram templos e capelas.
Há batalhas interiores a que é impossível esquivar-se. Jamais baixar a guarda. Escolher o terreno e a antecipar-se ao inimigo. A hoste tomará posição na vertente norte de uma colina rodeada por ribeiros. Covas de lobo ocultadas com ramos a parecer chão firme. Baptizar as fileiras com os nomes mais belos. Ala dos namorados. Ala de madressilva. Na rectaguarda o rei em pessoa. Montado num cavalo inquieto, que segura pelos arreios, pressente a vitória. Crê-se que também ele olhava o céu. Como a humanidade no berço da vida. Ordenará que se levante ali um mosteiro para que a quietude impere sobre o eco de corpos caídos.
A claraboia da infância. Foi ela que a levou àquele lugar. Quer a perturbação de um berço a céu aberto. Ter a via láctea como abóbada. Contrapor a volatilidade da vida às paredes e àquele piso eterno. As pálpebras coladas como gargantas secas, vão deixando para trás visões vencidas. Abre os olhos em sobressalto e deita a cabeça para trás. Está no centro de um corpo central octogonal. A cobertura inacabada encaixa na perfeição do universo. Nessa visão avassaladora entende como a humanidade pode ser esmagada por sete capelas imperfeitas.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

Leave a Reply