A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Fevereiro teve 28 dias, mas nem por isso o ano foi comum. E que terá o tempo a dizer sobre isso? Que voltas a terra deu à volta de um ano em que acordar e abrir as cortinas teve sempre um significado diferente. Sentar no sofá e olhar pela janela. Ver céus de todas as cores em todas as horas do dia. Amar excessivamente as madrugadas. Morrer na espera dos poentes. Sentir a chuva nas vidraças, o sopro dos flocos de neve ou o sol tórrido de um Verão inusual.

A dor a pôr à prova todos os limites. Físicos, emocionais, humanos. O movimento de translação a estender-se. As estações do ano entrecruzavam-se. A manhã poderia trazer a morna carícia de um Verão inicial. Ao cair do dia um gélido vento norte afastaria as aves que, nas horas de luz, provocaram o vôo.
Às vezes uma inesperada enxurrada apagava o sol do meio-dia e inundava-lhe as mãos. A Primavera cobriu-se de flores amarelas e os orvalhos lambiam-se de tão puros. Cheiros a erva cortada e ao feno da infância. Junho foi o Outono mais dilacerante da vida. Uma folha caiu para ser matéria noutra dimensão.

Num parque, quase bosque encantado, foi-se perdendo nas horas. Montou cavalos voadores e procurou reis que acreditassem no regresso da amada. Luas e lobos colonizaram um país descoberto onde cada morrer e renascer poderia demorar um segundo. Olhos fechados, sorrisos e mãos abertas. Olhos abertos, sal e punhos cerrados.

O banco onde alguém escreveu minha pequena. O riacho. Os sons das bandas sonoras de cada manhã. A terra, sob os pés, seca e gretada. Outras vezes encharcada por onde prosseguia sem temores. A loucura de sentir para saber que se vive. O universo a acercar-se mais. Músicas anónimas e poesias que velavam desde o início dos tempos. Abismos e mares a arder. Paisagens sonoras.
O Alasca a correr na sua direcção, como se não soubesse dizer bom dia de outra forma. Mais alguém a avistou ao longo desse ano incomum? À distância foi sentindo as mãos de certas pessoas. De outras apenas o distanciar das mãos. A vida traz e a vida leva. A vida ensina. Aprendemos. Mas não nos tornamos sábios, nem sequer detentores de certezas. Talvez as dúvidas se agigantem. Ela é, provavelmente, tão só um corpo com uma alma insaciável. Ou um corpo dorido de dor real.

O mundo afinal não pára. Às vezes tem um baloiço, talvez dois. Mas num ou noutro momento teremos que descer. Não há ninguém atrás de nós que nos empurre. É quando tomamos consciência que a força está, tem que estar, dentro de nós. É essa força que nos outorga a vida.

A terra vai continuar a movimentar-se, destemida. Ela a vacilar. A cair e a levantar-se. A deixar-se ficar um pouco mais estendida na erva, só para que o pulsar da terra lhe incruste memórias.

Hoje quando chegou ao parque o Alasca estava de saída. Percebeu que era mais tarde que o habitual. O Alasca era o seu relógio.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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