A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

Algum tempo depois de ter nascido o pai aconchegou-a num berço de madeira que ele mesmo construíra. Quando começou a descobrir o pequeno mundo à sua volta, enquanto a luz lhe desviava os receios, um tecto de madeira pintado de branco incumbia-se de distanciar fantasmas. Com o passar dos meses inaugurou algumas escapadelas fazendo deslizar o seu corpo pelo soalho de madeira. As mãos testavam cada tábua. Os deditos a quererem encaixar-se nas frinchas. E aquele cheiro a madeira lavada, ainda húmida, que a mãe se esforçava por manter sempre bem asseada. Na escola aprendeu que as árvores são nossas amigas. Que dão sombra no verão. Que algumas dão frutos e que de todas se retira a madeira. Que umas têm folha caduca e outras folha perene. Que há tantas espécies de árvores que nunca chegaríamos a ver cada uma delas. Mas, naquele tempo, os poderosos castanheiros que observava de qualquer ponto da aldeia eram o suficiente para encher a sua visão. Os troncos seculares que se ramificavam de verde, os ouriços a quererem crescer, a tornarem-se maduros até se abrirem como bicos de pássaros a depositar sustento na boca dos filhos. O deslumbramento, esse, seria apoteótico com o regresso do Outono.

A vida foi-se cumprindo. Conheceu novos lugares. Aprendeu a chamar as árvores pelo nome e soube dos seus ciclos. Um dia, num impulso invulgar, abraçou uma árvore. Sentiu algum pudor por não entender o que a levara a tal acto. Haveria de perceber mais tarde que a árvore pode ser um regaço. Que a sua seiva nos aquece o sangue. Que as suas raízes nos seguram à terra. Que por dentro dos seus troncos há anéis dourados onde o clima se eternizou. Que para contar os anos escusamos os dedos. Enormes tesouros que a sua crosta esconde. E passou a afagar a pele das árvores. Às vezes ainda sente o soalho da casa da infância.

Julga que a arte pode ter os pés assentes na contemplação e na cumplicidade com a natureza. Telas pintadas prestes a explodir. Poemas brancos e depurados escritos, sem mãos, sob a copa das árvores. Ou por dentro da sua nudez. Honrosas sinfonias e a mais minimalista das músicas. Pedras talhadas a contemplar a luz. Danças transparentes a aspergir os regatos. Grandes planos de câmaras em películas revelados.

Se fosses uma árvore, perguntou um dia num jogo, que árvore serias? – Um sobreiro. Olhou, fascinada, a pessoa que respondera e entendeu que há homens semelhantes a árvores. Percorreu as ruas duma cidade anónima para admirar o jacarandá de que alguém lhe tinha falado. Colheu cerejas e medronhos. Comeu cerejas e medronhos. Balançou com o brilho das folhas de oliveiras gregas. Bebeu água a nascer da terra ladeada de salgueiros. Sacudiu os ramos de uma carrasqueira para desviar a morte. Sentou-se debaixo de cedros do Líbano. Adormeceu e acordou. Um dia presenciou um massacre. Maquinalmente, como se do nada e sem porquê, dezenas de árvores estavam a ser decapitadas numa avenida. Quem ordenara tal mortandade? Sem que pudesse evitar, as lágrimas apressavam-se salgadas. Também ela se sentia mutilada. As muletas em que se apoiava juntaram-na ao pequeno grupo de protesto. Se ousassem continuar, alguém teria que os sacrificar primeiro. Venceram.

Ao olhar aqueles troncos moribundos viu-se rodeada de anéis dourados. Estonteada, sentiu-se novamente criança na claridade do berço. Numa fracção de segundo considerou que só faz sentido morrer de pé. Como as árvores devem morrer.

 

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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