A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

O mundo era demasiado pequeno para aguentar uma âncora tão forte. Nesse tempo não se adivinhava. Havia anjos que nos faziam levitar sem que nos apercebêssemos. Foram tantas as vezes que sem o sabermos voámos. As manhãs doces de espanto de um novo dia. Doces no café da manhã. Doces no olhar e nos braços que, num tom afável, soletravam – bom dia. A singeleza descomplicada injectava em nós o vigor e a vontade. A âncora era de ferro.
O navio da vida era um fio de mel a deslizar pelo rio depois de ter bebido, nas mãos em concha, as águas frescas da nascente. Ninguém sabia quais os portos onde alguma vez se iria deter. Nuns passageiramente, noutros em delongas e doídas demoras. Até um dia o rio não ter mais leito e deparar-se com um muro de cimento impossível de transpor. Do mar ouvira-se falar. Mas essa parede não seria a amurada que nos acalentaria até chegarmos ao mar, esse mar de que se ouvira falar.
Às vezes a âncora era partilhada, como se todos tivessem a certeza de que hoje tu não podes, serei eu. E mesmo sem bússolas ou portulanos o ponto de chegada não tinha significado. De nada importava ser o norte ou o sul. Era, sim, uma espécie de baía onde se regressava. Uma baía que também frequentava a nossa casa. Fazia serões e contava histórias. Às vezes rezava e agradecia o pão. E ríamos tanto com essa baía na nossa casa. Por isso estar nessa baía era estar em casa. Se a tarde caísse havia o lume e o colchão onde poderíamos pernoitar. Éramos crianças num mundo pequeno repleto de âncoras.
No Inverno madrugava a surpresa repentina da neve que o vento soprara até tapar a porta da rua. As veredas que os mais velhos abriam erigiam muros mais altos que nós. E, quando a neve gelava, os homens munidos de picões faziam de tudo para evitar as quedas. Já antes tínhamos resvalado rua abaixo, apostas prévias, para se saber quem chegava ao fundo da rua sem cair. Ainda que se tombasse a âncora puxaria por todos e, ali no porto seguro, cada um se aquecia nos seus braços de ferro que abrasavam junto ao fogo.
O bafo quente do Verão surgiria e com ele uma quietude quase surda que o sol autorizava. Procurávamos o quarto mais fresco da casa para nos entregarmos à moleza. Ao entardecer a caminhada até ao rio levava-nos por trilhos de um pó fino e xistoso. Roubavam-se maçãs verdes que continham, sem percebermos, o suco da existência. O mergulho no rio encarregar-se-ia de nos lavar. Nessas águas as âncoras vogavam sem que ninguém pressentisse.
Era leve a vida. As âncoras eram estáveis e prometiam a eternidade. A morte acontecia sempre ao largo. Nem deuses nem demónios se aproximavam, como se um espanta-espíritos desafiasse o alarme em cada sopro de vento. O sino poderia tocar que nós haveríamos de rir. Ríamos da morte como ríamos do dia ou dos gelados feitos de groselha e água. A concertina percorria as ruas ao domingo. Seguíamo-la como num ritual pagão. Quando o tocador se sentava todos dançávamos da forma que sabíamos dançar – rindo.
Longe dos nossos horizontes encontravam-se águas mais lodacentas com poemas de dor escondidos. Jamais imaginaríamos que o ferro oxida e que desta reacção surgiria a ferrugem. E que a parte estável do nosso ser poderia não resistir a algumas tempestades. E que o barco arriscaria perder estabilidade. E que um dia poderíamos tornarmo-nos nós mesmos na âncora. E que nos afastaríamos do molhe só para evitar ouvir os gemidos.
Ainda há noites de lobos em que tememos os uivos. Receamos o escuro como se o mundo fosse a preto e branco. Ou se um conflito entre a terra e a água urgisse resolver. Tememos ser marinheiros e ter na âncora o último refúgio. Mas terra e água têm que ser livres para que juntas fecundem em harmonia.

Sobre o autor

Maria Afonso

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