A ignorância é muito atrevida

Escrito por António Ferreira

“Não lhe diz “siga mais devagar” ou “vá antes na faixa da direita” ou “levante o pé antes das curvas”, assim como o motorista não lhe diz como deve despachar o processo X.”

O ministro Cabrita nunca poderia ser ministro dos Negócios Estrangeiros, tão pouco jeito tem para a diplomacia. Talvez nem tenha jeito para ser ministro, seja qual for o ministério, a acreditarmos na comunicação social e na oposição ao governo. A gota de água foi ir num automóvel, conduzido pelo menos a 163 quilómetros por hora, que atropelou e matou um trabalhador na autoestrada. O advogado da família acha que o ministro deve ir preso, vários comentadores televisivos pensam o mesmo (e alguns deles são advogados), a oposição em geral também e quem não pensa que deve ir preso pensa que já devia ter sido demitido há muito tempo.
O que se sabe dos factos é mais ou menos isto: O ministro seguia no banco de trás de um carro oficial do Ministério da Administração Interna; este carro circulava na faixa da esquerda a 163 km/hora; na faixa da direita ia um camião em marcha lenta, para serviços de manutenção da via; um dos trabalhadores tinha atravessado a autoestrada para ir ao separador central e, no regresso àquele camião, ou aos trabalhos em curso, foi colhido mortalmente pela viatura em que seguia o ministro.
Duas conclusões, para já: a viatura seguia em excesso de velocidade; o trabalhador cometeu uma contraordenação ao atravessar a via (toda a gente viu já, à entrada das autoestradas, os sinais de proibição de circulação a peões, velocípedes e veículos de tração animal). Uma vez que os trabalhos na autoestrada são perigosos quando o trânsito não é previamente cortado, a empresa encarregada dos trabalhos deveria elaborar e fazer seguir um plano de segurança e, se o não fez, terá também cometido uma contraordenação.
Quanto à responsabilidade criminal do motorista, acusado pelo crime de homicídio, para ser condenado vai ser necessário demonstrar que o excesso de velocidade foi causa da morte e que esta não teria acontecido se a velocidade máxima fosse respeitada. Como parece evidente, um embate a 120 kms por hora teria tido quase de certeza o mesmo resultado e por isso será necessário provar mais qualquer coisa, do género “o motorista representou a possibilidade de haver pessoas a circular a pé na via e mesmo assim não reduziu a velocidade”. A probabilidade de se vir a provar algo assim é muito fraca, desde logo porque motorista algum representa essa possibilidade em abstrato e todos partem do princípio de que em autoestradas não há peões. Pior, se o carro onde seguia o ministro estava a ultrapassar um camião era suposto o motorista focar a sua atenção nesse lado da estrada e não no oposto, onde veio a surgir o peão.
E o ministro? Quem vai no banco de trás num desses grandes e potentes carros pretos vai ao telemóvel, ou a ler, ou a dormitar. Não vai a dar instruções ao profissional experiente que segue ao volante. Não lhe diz “siga mais devagar” ou “vá antes na faixa da direita” ou “levante o pé antes das curvas”, assim como o motorista não lhe diz como deve despachar o processo X. O motorista tem autonomia técnica e responsabilidade pessoal. É verdade que o proprietário da viatura, conduzida no seu próprio interesse, tem a chamada direção efetiva do veículo e responde em primeira linha perante os lesados, mas isso não o impede de demandar depois o motorista e, em sede de direito de regresso, reaver deste as indemnizações que tiver pago aos lesados – se estes tiverem direito a elas. Para além disso, essa regra apenas é relevante em processos civis, não em processos criminais: nestes, só é responsabilizado quem vai ao volante e os passageiros só o serão, na prática, se tiverem coagido o motorista a provocar o acidente.
E a vítima? Se vier a provar-se, no processo de acidente de trabalho, que atravessou a faixa de rodagem sem se assegurar previamente de que não vinha nenhuma viatura na sua direção, então o acidente pode ser descaracterizado como acidente de trabalho e a família não virá a receber nada (artigo 14.º, 1, a) da Lei dos Acidentes de Trabalho), ou então, se vier a concluir-se que tudo aconteceu porque a entidade patronal do trabalhador não assegurou as condições de segurança, será esta responsável por todos os danos que resultarem do acidente e a seguradora irá procurar ser excluída do processo.
Regressemos ao ministro. Como vamos de incêndios, de violência policial e eficácia das polícias e da administração pública, de conservação de estradas, pontes ou dos equipamentos do Estado em geral? Ele agiu bem nas funções que, essas sim, eram de sua responsabilidade? Ninguém parece saber muito bem, mas todos sabem, ou julgam saber, que o lugar dele é na cadeia.

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António Ferreira

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